quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Coletânea [033]

024. Cortesia e/ou descortesia linguística


«"A polidez é a melhor forma de resistência"»

Acabo de receber, via correio eletrónico, enviada por um Amigo (cujo nome, por cortesia / delicadeza / polidez, não revelo), parte da crónica que João Pereira Coutinho publicou, em 27/12/16, no jornal Folha de S. Paulo. Por considerar caber nesta secção, eis a sua reprodução em formato jpeg.


Dado o interesse que continuo a (man)ter pela problemática da cortesia linguística, procurei e encontrei reproduzida - AQUI - a versão integral da referida crónica, na esperança de que seja útil aos interessados pelas questões da (des)cortesia verbal e paraverbal .

Obrigado, Amigo!

quarta-feira, 4 de março de 2015

Coletânea [032]

023. Cortesia e/ou descortesia linguística


«Toda a gente gosta de ser bem tratada»

[Conversa (de ficção) entre indivíduos com estatutos profissionais diferentes, dentro de uma empresa de fabrico de armas. Atos e estratégias de tratamento, de negociação de tratamentos, hierarquia socioprofissional, negociação de tratamentos, distância social... em Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas (2014) de José Saramago.]


[...] Vejo que compreendeu a minha intenção, O senhor administrador tinha sido muito claro quanto aos propósitos da pesquisa, E os arquivistas, disseram-me aqui que o empregado principal é um homem complicado, de trato difícil, Assim começou por me parecer também, mas é só questão de lhe dar a volta, reconhecê-lo como chefe indiscutível do serviço, pedir-lhe conselho mesmo quando não seja necessário, a partir daí torna-se na mais prestável das criaturas, Diplomacia, portanto, Todo a gente gosta de ser bem tratada, senhor administrador, uma boa palavra faz milagres, Quais são os seus planos agora, Antes de chegarmos à guerra civil de espanha, ainda teremos de passar pela de itália contra a abissínia, Contra a etiópia, Pelo que tenho lido, senhor administrador, naquele tempo dizia-se mais abissínia que etiópia. Trata-me por engenheiro, que é o que serei toda a vida e não administrador ou administrador-delegado, que é coisa que tanto poderá durar como não, aliás, amanhã sairá uma ordem de serviço com esta diretiva, O pessoal vai gostar, senhor engenheiro, o tratamento de administrador-delegado impunha uma distância que na realidade não existia, eu que o diga [...].

Saramago, J., 2014: Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas.
Porto: Porto Editora; pp. 75-76


NB - Foram respeitadas a grafia e a pontuação da edição consultada. Em meu entender, onde se lê «causalidade» (linha 16, na transcriçã0) deverá ler-se «casualidade», por razões de coerência co(n)textual. Trata-se de uma gralha gráfica, evidentemente.
Reprodução autorizada pela editora e pela Fundação José Saramago.
Obrigado.


LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística, uma competência discursivo-textual. (Dissertação de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Também AQUI.

Obs. - O leitor eventualmente interessado no sistema linguístico da cortesia verbal em português, encontrará também, ao longo deste blogue, além de artigos do autor (dez primeiros posts), textos recolhidos e transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de boas maneiras.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Coletânea [031]

022. Cortesia e/ou descortesia linguística


[Conversa (de ficção) entre indivíduos com estatutos profissionais diferentes, dentro de uma empresa de fabrico de armas. Atos e estratégias de tratamento, de negociação de tratamentos, hierarquia socioprofissional, formas e fórmulas de agradecimento, atos diretivos indiretos, de valorização e de desvalorização de faces... em Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas (2014) de José Saramago.]



[…] Obediente, artur paz semedo leu as primeiras linhas a meia voz, passou à constituição da mesa, mas sesinando decidiu antecipar-se, O assunto principal nessa assembleia foi discutir a proposta de alteração da razão social de armas belona para produções belona, como agora se chama, E que razões havia para essa mudança, perguntou artur paz semedo, Pensava-se então em alargar a atividade da empresa ao fabrico de maquinaria agrícola, Realmente, sendo assim não podia continuar a chamar-se armas belona, Exatamente, mas também é certo que a ideia não foi para diante, É um documento importantíssimo, não sei como agradecer-lhe a ajuda, disse artur paz semedo, Talvez lho diga um dia, a verdade é que estou cansado desta vida de toupeira, gostaria de me mudar lá para cima. Sopesando o livro como se o estivesse embalando, artur paz semedo disse, Se lhe puder ser útil conte comigo, e logo, como quem dá voz à ideia principal que o ocupava, Em mil novecentos e trinta e três o atual administrador-delegado ainda não era nascido, disse. Uns vêm, outros vão, respondeu sesinando, Graças à sua preciosa ajuda, logo no primeiro dia tenho algo para lhe levar, Eu não o faria, esperaria um tempo, digamos uma semana, Porquê?, Porque é difícil crer numa causalidade [casualidade] como essa de descobrir um documento de tanto interesse mal pôs os pés no arquivo, Tem toda a razão, senhor sesinando, não devo precipitar-me, Chame-me sesinando, ao chefe há que chamar-lhe sempre senhor arsénio, mas para as pessoas com quem simpatizo, sesinando basta, Obrigado, foi uma sorte tê-lo conhecido, Espero não lhe dar motivos para se arrepender, Não mos dará a mim nem eu lhos darei  a si, Que estes papéis o ouçam. […]

Saramago, J., 2014: Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas.
Porto: Porto Editora; pp. 65-66


NB - Foram respeitadas a grafia e a pontuação da edição consultada. Em meu entender, onde se lê «causalidade» (linha 16, na transcriçã0) deverá ler-se «casualidade», por razões de coerência co(n)textual. Trata-se de uma gralha gráfica, evidentemente.
Reprodução autorizada pela editora e pela Fundação José Saramago.
Obrigado.


LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística, uma competência discursivo-textual. (Dissertação de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Também AQUI.


Obs. - O leitor eventualmente interessado no sistema linguístico da cortesia verbal em português, encontrará também, ao longo deste blogue, além de artigos do autor (dez primeiros posts), textos recolhidos e transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de boas maneiras.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Coletânea [030]

021. Cortesia e/ou descortesia linguística



[Conversa (de ficção) entre indivíduos com estatutos profissionais diferentes, dentro de uma empresa de fabrico de armas. Atos e estratégias de tratamento, hierarquia, cortesia não verbal, atos diretivos indiretos, saudações fáticas de início de conversa e de despedida, de valorização e de desvalorização de faces… em Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas (2014) de José Saramago.]


[…] Quando finalmente lhe vieram dizer que o administrador o esperava, levantou-se com aparente firmeza da cadeira e com a mesma aparente firmeza percorreu os amplos corredores que o levavam ao santo dos santos de produções belona s. a., isto é, o gabinete de trabalho do máximo responsável da empresa. Recebeu-o a secretária, que lhe pediu que esperasse um minuto, mas foi só passado quase um quarto de hora e após haver atendido uma chamada interna, que entreabriu a porta de comunicação com a sala ao lado e anunciou, Senhor administrador, está aqui o senhor paz semedo. Uma voz clara, correta, bem modulada, disse, Que passe. Artur paz semedo experimentou algumas dificuldades em mover-se em linha reta, mas, melhor ou pior, conseguiu atravessar o espaço até à enorme secretária atrás da qual o administrador esperava, de pé. Ao gesto dele, artur paz semedo sentou-se, pondo todos os cuidados em não se instalar na poltrona antes do patrão. A boa educação está feita de pormenores como este, que só os espíritos grosseiros desdenham. O administrador é um homem de quarenta e dois anos, bem-parecido, moreno de sol e de desportos ao ar livre, vela, golfe, ténis, enfim, vida de country and sea. Sobre a secretária vê-se uma pasta pouco volumosa que sem dúvida conterá, em papéis e anotações, o essencial da vida e do percurso profissional de artur paz semedo. O administrador abriu-a e tornou a fechá-la, cruzou os dedos e perguntou, Que assunto o traz aqui, se é um pedido de aumento de ordenado deve saber que tais questões não se tratam a este nível, De modo algum, senhor administrador, respondeu artur paz semedo numa voz que que falhou mais que uma vez, Então, quê, Tive uma ideia, senhor administrador, Em princípio, todas as ideias são bem-vindas, sobretudo se forem sensatas, e até mesmo alguma disparatada pode servir à falta de melhor, diga-me qual foi então a sua, Um estudo, senhor administrador, Que espécie de estudo, Analisar o nosso antigo sistema contabilístico, por exemplo, dos anos trinta, em comparação com o que utilizamos atualmente, Para quê, Pareceu-me interessante, senhor administrador, Interessante não digo que não seja, não sou entendido nessas matérias, mas confesso que não lhe vejo qualquer utilidade, suponho que não pretenderia chegar à conclusão de que o antigo sistema era melhor e que portanto deveríamos regressar a ele, Seria apenas um estudo, senhor administrador, sem mais finalidade, Portanto, inútil em minha opinião, Creio que tem toda a razão, senhor, reconheço que não teria qualquer utilidade prática para os tempos de hoje, afinal cometi um erro de apreciação, peço que desculpe o tempo que estou a roubar-lhe. O administrador abriu a pasta, folheou os documentos que continha, o rápido sorriso que lhe passou pelos lábios foi provocado pela informação sobre o comportamento do empregado de cada vez que havia mostra de armas, depois perguntou, E porquê esse seu interesse pelos anos trinta, Foi uma época de guerras, a de espanha, a que veio a seguir, a segunda guerra mundial, sem esquecer a da itália contra a etiópia, a do chaco, em que bolivianos e uruguaios, segundo li, andaram três anos a matar-se, e algumas mais, que nunca faltam, pensei que teria sido um tempo de grande atividade para a empresa, com efeitos contabilísticos importantes, Por outras palavras, que devemos ter ganho muito dinheiro, Poderá dizer-se assim, senhor administrador, mas esse é um assunto que não me diz respeito, nunca me atreveria, a minha intenção era simplesmente de natureza profissional e técnica. O contabilista estava encantado consigo mesmo, com a fluência das palavras que lhe iam saindo da boca, a liberdade de exposição, a inesperada sobriedade argumental, ainda por cima sem ter precisado de recorrer aos empecilhos do comparativo e do integrado. Se felícia estivesse ali perceberia, enfim, a espécie de marido que havia abandonado. Houve um silêncio, parecia que a entrevista ia terminar, mas o administrador, num tom que não se esperaria dele, distante, como se estivesse fatigado ou inquieto, disse, Todos os países, quaisquer que sejam, capitalistas, comunistas ou fascistas, fabricam, vendem e compram armas, e não é raro que as usem contra os seus próprios naturais. Na boca do administrador de uma fábrica de armamento estas palavras quase soavam a blasfémia, como se tivesse dito, É assim, mas não o deveria ser. Evidentemente não se esperaria que artur paz semedo respondesse, Não temos outro mundo, e de facto não se atreveu a tal. Aos pensamentos íntimos, há que respeitá-los, mesmo quando se tornaram explícitos. Para dar a entender que estava pronto para se retirar e regressar ao seu lugar na faturação, artur paz semedo moveu-se discretamente na poltrona, mas o administrador ainda tinha algo para dizer, Creio ter ficado claro que a sua ideia de um estudo comparativo das contabilidades das duas épocas fica posta de parte por despropositada e inútil, seria um desperdício de tempo que a empresa não pode permitir-se. Assim é, senhor administrador, interrompeu artur paz semedo, Em todo o caso, responda-me a esta pergunta, esse seu interesse pelos anos trinta vem de antes ou é coisa recente, É recente, há duas ou três semanas vi na cinemateca um filme passado na guerra civil de espanha chamado l’espoir e comecei a pensar, Pensou que valeria a pena investigar os negócios da empresa nesses anos, Isso não, senhor administrador, como já tive ocasião de dizer, mas pensei que era impossível que uma empresa tão conceituada como produções belona s.a. não tivesse tido alguma participação no assunto, Como fornecedora de armamento, Sim, senhor administrador, como fornecedora de armamento, nada mais, E isso seria bom, ou seria mau, Depende do ponto de vista, E o seu, qual é, Sendo empregado da empresa, desejo que ela prospere, se desenvolva, E como cidadão, como simples pessoa, Embora tenha de reconhecer que gosto de armas, devo preferir, como toda a gente, que não haja guerras, Toda a gente é muito dizer, pelo menos os generais não estariam de acordo consigo. O administrador fez uma pausa e rematou, E tão-pouco os administradores das fábricas de armamento, Guerras sempre as houve e haverá, disse artur paz semedo num tom desnecessariamente doutoral, o homem é um animal guerreiro por natureza, está-lhe na massa do sangue, Soa bem, senhor semedo, é uma boa definição, Obrigado, senhor administrador, é muita amabilidade soa. A pasta tornou a ser aberta, depois fechada, já era hora de pôr termo à conversação. Desta vez artur paz semedo achou que devia ser ele a levantar-se. Fê-lo com a costumada discrição, dizendo, Se o senhor administrador permite que me retire, Faça favor, respondeu o administrador, estendendo-lhe a mão. […]

[Saramago, J., 2014: Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas.
Porto: Porto Editora; pp. 35-43]

NB - Foram respeitadas a grafia e a pontuação da edição do original consultado. Reprodução autorizada pela editora e pela Fundação José Saramago. Obrigado.


LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística, uma competência discursivo-textual. (Dissertação de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Também AQUI.

Obs. - O leitor eventualmente interessado no sistema linguístico da cortesia verbal em português, encontrará também, ao longo deste blogue, além de artigos do autor (dez primeiros posts), textos recolhidos e transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de boas maneiras.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Coletânea [029]

020. Cortesia e/ou descortesia linguística ao telefone.


«Todo o cuidado é pouco com os casais separados.»
[Conversa ao telefone entre um casal recentemente separado, onde se encontram vários atos discursivo-textuais corteses (favoráveis à face positiva e/ou negativa) e sobretudo descorteses (lesivos ou ameaçadores das mesmas faces) em relação a cada um dos interlocutores ou interactantes (falar é agir). Trata-se do relato de uma conversa romanesca, fictícia portanto. Todavia, convirá recordar que tais interações verbais têm como modelo de realização, nas ficções, os diálogos autênticos, consoante os contextos e os cotextos em que ocorrem e desenvolvem, e por isso a eles adequados.]

[…] Artur paz semedo olhou a página do livro [l’espoir de andré malraux], viu os operários fuzilados, os morteiros inutilizados e, sem mais hesitação, voltou a marcar, desta vez até ao fim. O telefone deu três sinais e ela [felícia] respondeu, Estou, Sou eu, o artur, Já sabia, vi aqui o teu número, Desculpa vir ligar-te a esta hora, Ainda não é tarde, Aconteceu-me uma coisa de que gostaria de falar, Alguma problema, perguntou ela, Problema, não direi, mas estou com o espírito confuso, Se isso é por causa de alguma mulher que acabaste de conhecer, desejo-te as maiores felicidades, Qual mulher, qual nada, tenho coisas mais importantes em que pensar, Olha que seria digna de exame essa tua preocupação, pelo menos assim me parece, de quereres que acredite que não tens andado com ninguém depois de eu ter saído de casa, Ande ou não ande, não é da tua conta, não te diz respeito, Muito bem, explica-me então porque tens a cabecinha confusa, Há uma semana fui à cinemateca para ver um filme chamado l’espoir, Também o vi, estive lá anteontem, É uma história comovedora, sobretudo aquela descida da serra de teruel, Custa a segurar as lágrimas, é certo, Eu confesso que chorei, disse artur paz semedo, Já to disse, também eu, disse felícia. Houve um silêncio. Podia-se pensar que estavam contentes por terem partilhado uma emoção tão forte, quem sabe se por coincidência sentados na mesma cadeira do cinema, mas nunca o reconheceriam, fazê-lo seria dar uma mostra de debilidade sentimental de que o outro poderia vir a aproveitar-se. Todo o cuidado é pouco com os casais separados. Afinal, perguntou felícia, que tinhas tu para me contar, Depois do filme, achei que devia ler o livro deste Malraux, mas em má hora o fiz, Porquê, Já perto do fim há uma referência a uns operários que foram fuzilados em milão por terem sabotado obuses, E depois, Parece-te mal, perguntou ele. Nem mal nem bem, só me parece justo que eles o tivessem feito, Justo, justo, escandalizou-se artur paz semedo, fazendo vibrar de indignação a membrana interior do aparelho, Sim, não só justo, como necessário, uma vez que estavam contra a guerra, Claro, e agora estão mortos, A gente de alguma coisa tem de morrer, Fica-te mal o cinismo, aliás não me admira, sempre foste como uma pedra de gelo, Tu, sim, que és cínico ao exibir essa falsa virtude ofendida, e, quanto à pedra de gelo, peço meças, O que faço é defender o meu trabalho, graças ao qual pudeste viver uns quantos anos, Realmente, és um cavalheiro, se ainda não te havia agradecido a caridade, disse felícia, agradeço-ta agora, Deveria saber que iria arrepender-me de ter telefonado, Podes cortar a ligação quando quiseres, mas já agora peço-te que me dês tempo para contar-te uma história parecida que com certeza não conheces, é um minuto, não preciso de mais, Estou a ouvir, Li em tempos, não recordo onde nem exatamente quando, que um caso idêntico sucedeu na mesma guerra de espanha, um obus que não explodiu tinha dentro um papel escrito em português que dizia Esta bomba não rebentará, Isso deve ter sido obra do pessoal da fábrica de braço de prata, eram todos mais ou menos comunistas, Nessa altura parece que havia poucos comunistas, E algum que não o fosse, seria anarquista, Também pode ter sido gente da tua fábrica, Não temos cá disso, Braço de parta ou braço de ouro, o gesto é idêntico, com a diferença importante de que neste caso ninguém terá sido fuzilado, ao menos que se tivesse sabido, Ao contrário do que pareces pensar, não reclamo fuzilamento para os culpados de crimes como esse, mas apelo para o sentido de responsabilidade das pessoas que trabalham nas fábricas de armas, aqui ou em qualquer outro lugar, disse artur paz semedo, Sim, o mesmo tipo de responsabilidade que fez com que nunca tivesse havido uma greve nessas fábricas, Como o sabes, Teria sido notícia mundial, teria entrado na história, Não se pode discutir contigo, Pode, é o que temos estado a fazer, Devo desligar, Antes, ainda te dou uma sugestão para as horas vagas, Não tenho horas vagas, Pobre de ti, mouro de trabalho, Que sugestão é essa, Que investigues nos arquivos da empresa se nos anos da guerra civil de espanha, entre trinta e seis e trinta e nove, foram vendidos por produções belona s. a. Armamentos aos fascistas, E que ganharia eu com isso, Nada, mas aprenderias mais alguma coisa do teu trabalho e da vida, O arquivo da empresa só pode se consultado com autorização da administração, Usa a imaginação, inventa um motivo, creio que és um dos meninos bonitos desses criminosos, para alguma coisa te haverá de servir, Tenho de desligar, Já o havias dito antes, Desculpa ter-te incomodado, Pelos vistos, o incomodado és tu. Boas noites, Boas noites. Dez minutos depois o telefone de artur paz semedo tocou. Era felícia, Não procures encomendas assinadas pelo general franco, não as encontrarias, os ditadores só usam a caneta para assinar condenações à morte. E desligou antes de que ele pudesse responder.

[Saramago, J., 2014: Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas.
Porto: Porto Editora; pp. 25-29]

NB - Foram respeitadas a grafia e a pontuação da edição do original consultado. Reprodução autorizada pela editora e pela Fundação José Saramago. Obrigado.

LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística, uma competência discursivo-textual. (Dissertação de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Também AQUI.

Obs. - O leitor eventualmente interessado no sistema linguístico da cortesia verbal em português, encontrará também, ao longo deste blogue, além de artigos do autor (dez primeiros posts), textos recolhidos e transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de boas maneiras.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Coletânea [028]

019. Cortesia e distanciamento social



          «Matilde tinha as feições coradas pelo lustro do suor, que lhe realçava as sardas, quando montava a cavalo, em volteio, no redondel do monte. Dirigia-se a Gerardo com uma polidez distante, sobranceira, que a diferença de idades não justificava. Nunca deixou de tratar o primo por você, apesar da insistência do pai, que não era de arcas encouradas e praticava uma franqueza de lavrador muito refractária a preciosismos e etiquetas. À mesa era de uma rispidez de gestos, de uma secura de trato, de uma indiferença que intimidavam Gerardo. Ele, com a idade que tinha, não podia adivinhar que significavam o contrário do que aparentavam.»


Mário de Carvalho, 2013: «As estátuas de sal»,
em A Liberdade de Pátio. Porto: Porto Editora; pp. 86-87.


LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística, uma competência discursivo-textual. (Dissertação de doutoramento).
                     Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Também AQUI.

NB - O leitor eventualmente interessado no sistema linguístico da cortesia verbal me português, encontrará também, ao longo deste blogue, além de artigos do autor (dez primeiros posts), textos recolhidos e transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de boas maneiras.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Coletânea [027]


018. Cortesia (etiqueta) não verbal (beijar a mão) e verbal (tratamento por tu e/ou por você)





Nota - O texto, em imagens (jpeg), foi adaptado a esta apresentação, sem contudo em nada ser alterado o seu conteúdo.