021. Cortesia
e/ou descortesia linguística
[Conversa (de ficção)
entre indivíduos com estatutos profissionais diferentes, dentro de uma empresa
de fabrico de armas. Atos e estratégias de tratamento, hierarquia, cortesia não
verbal, atos diretivos indiretos, saudações fáticas de início de conversa e de
despedida, de valorização e de desvalorização de faces… em Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas (2014) de José
Saramago.]
[…]
Quando finalmente lhe vieram dizer que o administrador o esperava, levantou-se
com aparente firmeza da cadeira e com a mesma aparente firmeza percorreu os
amplos corredores que o levavam ao santo dos santos de produções belona s. a.,
isto é, o gabinete de trabalho do máximo responsável da empresa. Recebeu-o a
secretária, que lhe pediu que esperasse um minuto, mas foi só passado quase um
quarto de hora e após haver atendido uma chamada interna, que entreabriu a
porta de comunicação com a sala ao lado e anunciou, Senhor administrador, está
aqui o senhor paz semedo. Uma voz clara, correta, bem modulada, disse, Que
passe. Artur paz semedo experimentou algumas dificuldades em mover-se em linha
reta, mas, melhor ou pior, conseguiu atravessar o espaço até à enorme
secretária atrás da qual o administrador esperava, de pé. Ao gesto dele, artur
paz semedo sentou-se, pondo todos os cuidados em não se instalar na poltrona
antes do patrão. A boa educação está feita de pormenores como este, que só os
espíritos grosseiros desdenham. O administrador é um homem de quarenta e dois
anos, bem-parecido, moreno de sol e de desportos ao ar livre, vela, golfe,
ténis, enfim, vida de country and sea. Sobre a secretária vê-se uma pasta pouco
volumosa que sem dúvida conterá, em papéis e anotações, o essencial da vida e do
percurso profissional de artur paz semedo. O administrador abriu-a e tornou a
fechá-la, cruzou os dedos e perguntou, Que assunto o traz aqui, se é um pedido
de aumento de ordenado deve saber que tais questões não se tratam a este nível,
De modo algum, senhor administrador, respondeu artur paz semedo numa voz que
que falhou mais que uma vez, Então, quê, Tive uma ideia, senhor administrador,
Em princípio, todas as ideias são bem-vindas, sobretudo se forem sensatas, e
até mesmo alguma disparatada pode servir à falta de melhor, diga-me qual foi
então a sua, Um estudo, senhor administrador, Que espécie de estudo, Analisar o
nosso antigo sistema contabilístico, por exemplo, dos anos trinta, em
comparação com o que utilizamos atualmente, Para quê, Pareceu-me interessante,
senhor administrador, Interessante não digo que não seja, não sou entendido
nessas matérias, mas confesso que não lhe vejo qualquer utilidade, suponho que
não pretenderia chegar à conclusão de que o antigo sistema era melhor e que
portanto deveríamos regressar a ele, Seria apenas um estudo, senhor
administrador, sem mais finalidade, Portanto, inútil em minha opinião, Creio
que tem toda a razão, senhor, reconheço que não teria qualquer utilidade
prática para os tempos de hoje, afinal cometi um erro de apreciação, peço que
desculpe o tempo que estou a roubar-lhe. O administrador abriu a pasta, folheou
os documentos que continha, o rápido sorriso que lhe passou pelos lábios foi
provocado pela informação sobre o comportamento do empregado de cada vez que
havia mostra de armas, depois perguntou, E porquê esse seu interesse pelos anos
trinta, Foi uma época de guerras, a de espanha, a que veio a seguir, a segunda guerra
mundial, sem esquecer a da itália contra a etiópia, a do chaco, em que
bolivianos e uruguaios, segundo li, andaram três anos a matar-se, e algumas
mais, que nunca faltam, pensei que teria sido um tempo de grande atividade para
a empresa, com efeitos contabilísticos importantes, Por outras palavras, que
devemos ter ganho muito dinheiro, Poderá dizer-se assim, senhor administrador,
mas esse é um assunto que não me diz respeito, nunca me atreveria, a minha
intenção era simplesmente de natureza profissional e técnica. O contabilista
estava encantado consigo mesmo, com a fluência das palavras que lhe iam saindo
da boca, a liberdade de exposição, a inesperada sobriedade argumental, ainda
por cima sem ter precisado de recorrer aos empecilhos do comparativo e do
integrado. Se felícia estivesse ali perceberia, enfim, a espécie de marido que
havia abandonado. Houve um silêncio, parecia que a entrevista ia terminar, mas
o administrador, num tom que não se esperaria dele, distante, como se estivesse
fatigado ou inquieto, disse, Todos os países, quaisquer que sejam,
capitalistas, comunistas ou fascistas, fabricam, vendem e compram armas, e não
é raro que as usem contra os seus próprios naturais. Na boca do administrador
de uma fábrica de armamento estas palavras quase soavam a blasfémia, como se
tivesse dito, É assim, mas não o deveria ser. Evidentemente não se esperaria
que artur paz semedo respondesse, Não temos outro mundo, e de facto não se
atreveu a tal. Aos pensamentos íntimos, há que respeitá-los, mesmo quando se
tornaram explícitos. Para dar a entender que estava pronto para se retirar e
regressar ao seu lugar na faturação, artur paz semedo moveu-se discretamente na
poltrona, mas o administrador ainda tinha algo para dizer, Creio ter ficado
claro que a sua ideia de um estudo comparativo das contabilidades das duas
épocas fica posta de parte por despropositada e inútil, seria um desperdício de
tempo que a empresa não pode permitir-se. Assim é, senhor administrador,
interrompeu artur paz semedo, Em todo o caso, responda-me a esta pergunta, esse
seu interesse pelos anos trinta vem de antes ou é coisa recente, É recente, há
duas ou três semanas vi na cinemateca um filme passado na guerra civil de
espanha chamado l’espoir e comecei a pensar, Pensou que valeria a pena
investigar os negócios da empresa nesses anos, Isso não, senhor administrador,
como já tive ocasião de dizer, mas pensei que era impossível que uma empresa
tão conceituada como produções belona s.a. não tivesse tido alguma participação
no assunto, Como fornecedora de armamento, Sim, senhor administrador, como
fornecedora de armamento, nada mais, E isso seria bom, ou seria mau, Depende do
ponto de vista, E o seu, qual é, Sendo empregado da empresa, desejo que ela
prospere, se desenvolva, E como cidadão, como simples pessoa, Embora tenha de
reconhecer que gosto de armas, devo preferir, como toda a gente, que não haja
guerras, Toda a gente é muito dizer, pelo menos os generais não estariam de
acordo consigo. O administrador fez uma pausa e rematou, E tão-pouco os
administradores das fábricas de armamento, Guerras sempre as houve e haverá,
disse artur paz semedo num tom desnecessariamente doutoral, o homem é um animal
guerreiro por natureza, está-lhe na massa do sangue, Soa bem, senhor semedo, é
uma boa definição, Obrigado, senhor administrador, é muita amabilidade soa. A
pasta tornou a ser aberta, depois fechada, já era hora de pôr termo à
conversação. Desta vez artur paz semedo achou que devia ser ele a levantar-se.
Fê-lo com a costumada discrição, dizendo, Se o senhor administrador permite que
me retire, Faça favor, respondeu o administrador, estendendo-lhe a mão. […]
[Saramago, J., 2014: Alabardas,
alabardas / Espingardas, espingardas.
Porto: Porto Editora; pp. 35-43]
NB - Foram
respeitadas a grafia e a pontuação da edição do original consultado. Reprodução
autorizada pela editora e pela Fundação José Saramago. Obrigado.
LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística,
uma competência discursivo-textual. (Dissertação de
doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Também AQUI.
Obs. - O leitor eventualmente interessado no sistema linguístico da
cortesia verbal em português, encontrará também, ao longo deste blogue, além de
artigos do autor (dez primeiros posts), textos recolhidos e
transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de boas maneiras.