020. Cortesia e/ou descortesia linguística ao telefone.
«Todo o cuidado é
pouco com os casais separados.»
[Conversa ao
telefone entre um casal recentemente separado, onde se encontram vários atos discursivo-textuais
corteses (favoráveis à face positiva e/ou negativa) e sobretudo descorteses (lesivos
ou ameaçadores das mesmas faces) em relação a cada um dos interlocutores ou
interactantes (falar é agir). Trata-se do relato de uma conversa romanesca,
fictícia portanto. Todavia, convirá recordar que tais interações verbais têm
como modelo de realização, nas ficções, os diálogos autênticos, consoante os contextos e os cotextos em que ocorrem e desenvolvem, e por isso a eles adequados.]
[…] Artur
paz semedo olhou a página do livro [l’espoir de andré malraux], viu os
operários fuzilados, os morteiros inutilizados e, sem mais hesitação, voltou a
marcar, desta vez até ao fim. O telefone deu três sinais e ela [felícia]
respondeu, Estou, Sou eu, o artur, Já sabia, vi aqui o teu número, Desculpa vir
ligar-te a esta hora, Ainda não é tarde, Aconteceu-me uma coisa de que gostaria
de falar, Alguma problema, perguntou ela, Problema, não direi, mas estou com o
espírito confuso, Se isso é por causa de alguma mulher que acabaste de
conhecer, desejo-te as maiores felicidades, Qual mulher, qual nada, tenho
coisas mais importantes em que pensar, Olha que seria digna de exame essa tua
preocupação, pelo menos assim me parece, de quereres que acredite que não tens
andado com ninguém depois de eu ter saído de casa, Ande ou não ande, não é da
tua conta, não te diz respeito, Muito bem, explica-me então porque tens a
cabecinha confusa, Há uma semana fui à cinemateca para ver um filme chamado l’espoir,
Também o vi, estive lá anteontem, É uma história comovedora, sobretudo aquela
descida da serra de teruel, Custa a segurar as lágrimas, é certo, Eu confesso
que chorei, disse artur paz semedo, Já to disse, também eu, disse felícia.
Houve um silêncio. Podia-se pensar que estavam contentes por terem partilhado
uma emoção tão forte, quem sabe se por coincidência sentados na mesma cadeira
do cinema, mas nunca o reconheceriam, fazê-lo seria dar uma mostra de
debilidade sentimental de que o outro poderia vir a aproveitar-se. Todo o
cuidado é pouco com os casais separados. Afinal, perguntou felícia, que tinhas
tu para me contar, Depois do filme, achei que devia ler o livro deste Malraux,
mas em má hora o fiz, Porquê, Já perto do fim há uma referência a uns operários
que foram fuzilados em milão por terem sabotado obuses, E depois, Parece-te
mal, perguntou ele. Nem mal nem bem, só me parece justo que eles o tivessem
feito, Justo, justo, escandalizou-se artur paz semedo, fazendo vibrar de
indignação a membrana interior do aparelho, Sim, não só justo, como necessário,
uma vez que estavam contra a guerra, Claro, e agora estão mortos, A gente de
alguma coisa tem de morrer, Fica-te mal o cinismo, aliás não me admira, sempre
foste como uma pedra de gelo, Tu, sim, que és cínico ao exibir essa falsa
virtude ofendida, e, quanto à pedra de gelo, peço meças, O que faço é defender
o meu trabalho, graças ao qual pudeste viver uns quantos anos, Realmente, és um
cavalheiro, se ainda não te havia agradecido a caridade, disse felícia,
agradeço-ta agora, Deveria saber que iria arrepender-me de ter telefonado,
Podes cortar a ligação quando quiseres, mas já agora peço-te que me dês tempo
para contar-te uma história parecida que com certeza não conheces, é um minuto,
não preciso de mais, Estou a ouvir, Li em tempos, não recordo onde nem
exatamente quando, que um caso idêntico sucedeu na mesma guerra de espanha, um
obus que não explodiu tinha dentro um papel escrito em português que dizia Esta
bomba não rebentará, Isso deve ter sido obra do pessoal da fábrica de braço de
prata, eram todos mais ou menos comunistas, Nessa altura parece que havia
poucos comunistas, E algum que não o fosse, seria anarquista, Também pode ter
sido gente da tua fábrica, Não temos cá disso, Braço de parta ou braço de ouro,
o gesto é idêntico, com a diferença importante de que neste caso ninguém terá
sido fuzilado, ao menos que se tivesse sabido, Ao contrário do que pareces
pensar, não reclamo fuzilamento para os culpados de crimes como esse, mas apelo
para o sentido de responsabilidade das pessoas que trabalham nas fábricas de
armas, aqui ou em qualquer outro lugar, disse artur paz semedo, Sim, o mesmo
tipo de responsabilidade que fez com que nunca tivesse havido uma greve nessas
fábricas, Como o sabes, Teria sido notícia mundial, teria entrado na história,
Não se pode discutir contigo, Pode, é o que temos estado a fazer, Devo
desligar, Antes, ainda te dou uma sugestão para as horas vagas, Não tenho horas
vagas, Pobre de ti, mouro de trabalho, Que sugestão é essa, Que investigues nos
arquivos da empresa se nos anos da guerra civil de espanha, entre trinta e seis
e trinta e nove, foram vendidos por produções belona s. a. Armamentos aos
fascistas, E que ganharia eu com isso, Nada, mas aprenderias mais alguma coisa
do teu trabalho e da vida, O arquivo da empresa só pode se consultado com
autorização da administração, Usa a imaginação, inventa um motivo, creio que és
um dos meninos bonitos desses criminosos, para alguma coisa te haverá de
servir, Tenho de desligar, Já o havias dito antes, Desculpa ter-te incomodado,
Pelos vistos, o incomodado és tu. Boas noites, Boas noites. Dez minutos depois
o telefone de artur paz semedo tocou. Era felícia, Não procures encomendas
assinadas pelo general franco, não as encontrarias, os ditadores só usam a
caneta para assinar condenações à morte. E desligou antes de que ele pudesse
responder.
[Saramago, J., 2014: Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas.
Porto: Porto Editora; pp. 25-29]
NB - Foram respeitadas a grafia e a pontuação da edição do original consultado. Reprodução autorizada pela editora e pela Fundação José Saramago. Obrigado.
LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística,
uma competência discursivo-textual. (Dissertação de
doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de
Lisboa. Também AQUI.
Obs. - O leitor eventualmente
interessado no sistema linguístico da cortesia verbal em português, encontrará
também, ao longo deste blogue, além de artigos do autor (dez primeiros posts),
textos recolhidos e transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de
boas maneiras.
David, obrigada. Anuncias bom humor ao escolheres um pequeno excerto do Livro, «Albardas, alabardas, Espingardas, espingardas», o livro inacabado de José Saramago e que eu li , logo que editado. E, como acontece, no geral, com toda a sua obra, me faz, sempre, ter um novo olhar sobre a grandeza e a miséria, humanas. E fruir dum imenso bom humor, sarcasmo e ironia.
ResponderEliminarEsta citação, escolhida por ti, integrando-a em Cortesia Linguística, criação tua. do telefonema entre Felícia e Artur Paz Semedo, casal separado, recentemente, transporta-nos, mais uma vez, para o humor, mas também, um enfoque nas fundas relações entre os companheiros que o foram e já não o são, querendo ou não querendo sê-lo. Desejando e não desejando.
E, apetece- me citar, aqui, para terminar este comentário, o poema:
Aprendamos Amor.
Aprendamos, Amor
Aprendamos , amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.
Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.
José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"
Muito obrigado, Margarida, pelo teu tão cuidado e bem construído comentário. O amor ou a sua ausência entre o casal é tema do fragmento narrativo, mas a sua escolha, para esta coletânea, tem a ver com as formas corteses e/ou descorteses que, numa conversa ao telefone, esse casal (um casal), ainda em situação de incerteza quanto à definitiva separação, pode dirigir ao ex-parceiro. Ao nível da Cortesia Linguístico, este fragmento saramaguiano tem pano para muita manga. Obrigado, de novo e sempre.
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