quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Coletânea [031]

022. Cortesia e/ou descortesia linguística


[Conversa (de ficção) entre indivíduos com estatutos profissionais diferentes, dentro de uma empresa de fabrico de armas. Atos e estratégias de tratamento, de negociação de tratamentos, hierarquia socioprofissional, formas e fórmulas de agradecimento, atos diretivos indiretos, de valorização e de desvalorização de faces... em Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas (2014) de José Saramago.]



[…] Obediente, artur paz semedo leu as primeiras linhas a meia voz, passou à constituição da mesa, mas sesinando decidiu antecipar-se, O assunto principal nessa assembleia foi discutir a proposta de alteração da razão social de armas belona para produções belona, como agora se chama, E que razões havia para essa mudança, perguntou artur paz semedo, Pensava-se então em alargar a atividade da empresa ao fabrico de maquinaria agrícola, Realmente, sendo assim não podia continuar a chamar-se armas belona, Exatamente, mas também é certo que a ideia não foi para diante, É um documento importantíssimo, não sei como agradecer-lhe a ajuda, disse artur paz semedo, Talvez lho diga um dia, a verdade é que estou cansado desta vida de toupeira, gostaria de me mudar lá para cima. Sopesando o livro como se o estivesse embalando, artur paz semedo disse, Se lhe puder ser útil conte comigo, e logo, como quem dá voz à ideia principal que o ocupava, Em mil novecentos e trinta e três o atual administrador-delegado ainda não era nascido, disse. Uns vêm, outros vão, respondeu sesinando, Graças à sua preciosa ajuda, logo no primeiro dia tenho algo para lhe levar, Eu não o faria, esperaria um tempo, digamos uma semana, Porquê?, Porque é difícil crer numa causalidade [casualidade] como essa de descobrir um documento de tanto interesse mal pôs os pés no arquivo, Tem toda a razão, senhor sesinando, não devo precipitar-me, Chame-me sesinando, ao chefe há que chamar-lhe sempre senhor arsénio, mas para as pessoas com quem simpatizo, sesinando basta, Obrigado, foi uma sorte tê-lo conhecido, Espero não lhe dar motivos para se arrepender, Não mos dará a mim nem eu lhos darei  a si, Que estes papéis o ouçam. […]

Saramago, J., 2014: Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas.
Porto: Porto Editora; pp. 65-66


NB - Foram respeitadas a grafia e a pontuação da edição consultada. Em meu entender, onde se lê «causalidade» (linha 16, na transcriçã0) deverá ler-se «casualidade», por razões de coerência co(n)textual. Trata-se de uma gralha gráfica, evidentemente.
Reprodução autorizada pela editora e pela Fundação José Saramago.
Obrigado.


LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística, uma competência discursivo-textual. (Dissertação de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Também AQUI.


Obs. - O leitor eventualmente interessado no sistema linguístico da cortesia verbal em português, encontrará também, ao longo deste blogue, além de artigos do autor (dez primeiros posts), textos recolhidos e transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de boas maneiras.

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