quarta-feira, 4 de março de 2015

Coletânea [032]

023. Cortesia e/ou descortesia linguística


«Toda a gente gosta de ser bem tratada»

[Conversa (de ficção) entre indivíduos com estatutos profissionais diferentes, dentro de uma empresa de fabrico de armas. Atos e estratégias de tratamento, de negociação de tratamentos, hierarquia socioprofissional, negociação de tratamentos, distância social... em Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas (2014) de José Saramago.]


[...] Vejo que compreendeu a minha intenção, O senhor administrador tinha sido muito claro quanto aos propósitos da pesquisa, E os arquivistas, disseram-me aqui que o empregado principal é um homem complicado, de trato difícil, Assim começou por me parecer também, mas é só questão de lhe dar a volta, reconhecê-lo como chefe indiscutível do serviço, pedir-lhe conselho mesmo quando não seja necessário, a partir daí torna-se na mais prestável das criaturas, Diplomacia, portanto, Todo a gente gosta de ser bem tratada, senhor administrador, uma boa palavra faz milagres, Quais são os seus planos agora, Antes de chegarmos à guerra civil de espanha, ainda teremos de passar pela de itália contra a abissínia, Contra a etiópia, Pelo que tenho lido, senhor administrador, naquele tempo dizia-se mais abissínia que etiópia. Trata-me por engenheiro, que é o que serei toda a vida e não administrador ou administrador-delegado, que é coisa que tanto poderá durar como não, aliás, amanhã sairá uma ordem de serviço com esta diretiva, O pessoal vai gostar, senhor engenheiro, o tratamento de administrador-delegado impunha uma distância que na realidade não existia, eu que o diga [...].

Saramago, J., 2014: Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas.
Porto: Porto Editora; pp. 75-76


NB - Foram respeitadas a grafia e a pontuação da edição consultada. Em meu entender, onde se lê «causalidade» (linha 16, na transcriçã0) deverá ler-se «casualidade», por razões de coerência co(n)textual. Trata-se de uma gralha gráfica, evidentemente.
Reprodução autorizada pela editora e pela Fundação José Saramago.
Obrigado.


LEITURAS
Rodrigues, D. F. (2003): Cortesia Linguística, uma competência discursivo-textual. (Dissertação de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Também AQUI.

Obs. - O leitor eventualmente interessado no sistema linguístico da cortesia verbal em português, encontrará também, ao longo deste blogue, além de artigos do autor (dez primeiros posts), textos recolhidos e transcritos em obras literárias, teóricas e em guias de boas maneiras.

2 comentários:

  1. Sou uma leitora assídua de Saramago. A obra Alabardas, alabardas / Espingardas, espingardas foi uma surpresa temática, obrigando-me à escrita de um texto no «aprender até morrer».
    Tentei encontrar a tua tese clicando em «aqui», mas já não se encontra disponível, segundo informação encontrada. O título é deveras interessante e a linguística interessa-me muito. O texto que selecionaste integra-se extraordinariamente bem na «cortesia linguística». Grande Saramago!

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    1. Maria José, também fiquei um pouco surpreendido, ontem, ao procurar os respetivos registos on-line das minhas teses (mestrado e doutoramento) com o facto de já não se encontrarem acessíveis. Desconheço as razões. Irei informar-me. Entretanto, se estiveres interessada na leitura de «Cortesia Linguística - uma Competência Discursivo-textual», posso enviar-te um cópia zipada.
      Bom dia e bom fim de semana, com um abraço.

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