Comunicação, discurso e cortesia (II)
[O texto que, neste post reproduzo é a parte final de uma versão reduzida e escrita de uma palestra que proferi na Escola Superior de Ciências Empresariais de Valença, do Instituto Politécnico de Viana do Castelo , no dia 12 de Novembro de 2004. Deveria ter sido publicado, depois, no n.º 3 da revista IPVC-Academia. Tal número, porém, nunca chegou a ser publicado. Entretanto, a revista terminou.]
David F. Rodrigues
[ESE-IPVC]
Ao Professor A. Lima de Carvalho
02. Da cortesia linguística
02.1. Teoria (s)
A cortesia linguística, enquanto domínio científico , tem pouco mais de 30 anos . O seu início , no quadro da Linguística Pragmática , data dos finais dos anos 70. Conheceu, porém , nas décadas seguintes , desenvolvimentos verdadeiramente consideráveis . A linguista francesa Catherine Kerbrat-Orecchioni chega mesmo a afirmar que ela «está na moda » [Kerbrat-Orecchioni, 1992: 161].
O modelo teórico de descrição e análise que tenho seguido, aplicado e adaptado ao estudo das cortesias e descortesias verbais em Português de Portugal, é o «sistema de cortesia » proposto por Kerbrat-Orecchioni. De entre a vasta obra que a linguista tem publicado sobre a matéria , destaco os tomos II e III de As Interacções Verbais , publicados, respectivamente , em 1992 e 1994, e o livro A Conversa , de 1996, onde se pode encontrar o essencial sobre a matéria , em particular , nos capítulos 8 a 10.
Esta linguista baseia, essencialmente , a elaboração do seu «sistema de cortesia », na teoria de Brown & Levinson. Nela colhe a principal terminologia (cortesia negativa e cortesia positiva ; face negativa e face positiva ) e sobretudo o conceito de acto ameaçador de face , que mantém na designação inglesa e respectiva sigla : Face Threatening Act (FTA). Além disso, aperfeiçoa e clarifica aquelas noções , o que a leva a introduzir , no modelo , um outro tipo de actos verbais , de natureza optimista (ao contrário dos ameaçadores , essencialmente pessimistas ), com a designação de actos valorizadores de face . Por coerência terminológica , a autora nomeia estes actos também em inglês e respectiva sigla : Face Flattering Act (FFA). Ao mesmo tempo , precisa aquelas definições , algo confusas, de facto, em Brown & Levinson.
A cortesia negativa é entendida , então , como abstencionista: a melhor forma de se ser verbalmente cortês é abster-se de realizar actos capazes de ferir as faces do nosso interlocutor , ou seja, de realizar um FTA. Perante , contudo , a inevitabilidade da sua realização , ou substitui-se por outro menos lesivo , e/ou acompanha-se de compensações . Está-se, num caso como noutro, no âmbito das estratégias discursivo-textuais atenuadoras.
A cortesia positiva , por seu turno , é de natureza produtiva . O locutor formula actos discursivo-textuais valorizadores, em regra e por princípio , das faces negativa e/ou positiva do interlocutor . Estes actos também podem ser (e são-no frequentemente) reforçados ou intensificados. O agradecimento, por exemplo , com que valorizamos a face positiva do alocutário, pode ser realizado apenas pela fórmula «Obrigado !», mas também , de forma intensificada, por «Muito , obrigado !», ou «Obrigadíssimo!», ou «Muito , muito obrigado !», ou «Muitíssimo obrigado !», ou «Imensamente grato /agradecido!» Sem excessos , contudo , não vá o pobre desconfiar da esmola . Altas cortesias , quando inadequadas ao contexto , passam, geralmente , as descortesias .
Conjugando os pares cortesia negativa vs. cortesia positiva , face negativa vs. face positiva , com o par de princípios que definem as regras de cortesia orientadas para as faces do alocutário (princípios A-orientados) vs. princípios que definem as regras de cortesia orientadas para as faces do locutor (princípios L-orientados), tem-se que , numa situação diádica interlocutiva, encontram-se em presença , pelo menos , quatro faces , conforme esquematicamente se representa na Fig. 1, faces que podem ser ameaçadas e/ou , inversamente, valorizadas.
Procuro representar , neste esquema , em síntese , a orientação dos actos corteses (FFA) e descorteses (FTA), e as faces dos interlocutores (efectivos ou não ) que , directa e/ou indirectamente, são atingidas com a sua realização . A realização de um acto ameaçador , descortês (FTA), ou um acto valorizador, cortês (FFA), atingem, directamente (setas curvas de cauda contínua ), uma ou ambas as faces do alocutário ou do locutor , mas acaba sempre , também , por atingir , ainda que indirectamente (setas curvas de cauda tracejada) as faces de um e outro . É o chamado efeito boomerang. Também por isso , direi, recordando, diz-me como falas , dir-te-ei como és.
02.2. Modelo : descrição e análises
Kerbrat-Orecchioni [1992: 184] sintetiza o «sistema de cortesia », como , em resumo , mostro na FIG. 2 e que , de forma breve , a seguir descreverei.
Os
Pondo, agora , a questão em termos linguísticos e no âmbito da cortesia linguística: porque utilizamos o imperfeito , tempo que situa o pedido no passado , quando ele acontece no presente e se quer ver perlocutoriamente realizado num futuro imediato ?
O princípio I.2 é de cortesia positiva . Propõe a valorização das faces do alocutário. Através de actos valorizadores, o locutor deve, por exemplo , disponibilizar-se a ajudar o alocutário, oferecer-lhe “presentes verbais ”, elogiar-lhe a família , os bens pessoais e materiais , dirigir-lhe cumprimentos e felicitações. As formas de tratamento corteses, em geral , e, dentro delas, as honoríficas e deferenciais, em particular , são realizações deste princípio .
Na hierarquia dos princípios corteses, vêm, em segundo lugar , os princípios orientados para o locutor (L-orientados). Distinguem-se, desta vez , princípios favoráveis ao locutor (II.A), de princípios desfavoráveis ao locutor (II.B). No que toca a II.A, há apenas um princípio , de cortesia negativa (II.A.1). O locutor deve salvaguardar , na medida do possível , a sua face negativa (os territórios pessoais ) de, por exemplo , intrusos e inoportunos . Além disso, não deve fazer falsas promessas , nem mentir . Por outro lado , não deve permitir que a sua face negativa seja atacada e ofendida. A acontecerem tais FTA’s, o locutor deve responder , defendendo-se. Quem não se sente…
A jornalista reage, defendendo a sua face positiva : «Ele insulta-me e, insultando-me, insulta os meus leitores .» Mais : «Insulta também o júri do Prémio Pessoa , de que faço parte há muitos anos a convite de Francisco Pinto Balsemão». Repare-se na mudança de referência e tratamento do director adjunto : depois de se lhe ter dirigido pelo cargo e pelo nome próprio , passa a referi-lo e a tratá-lo por ele , um pronome pessoal de terceira pessoa , assim manifestando afastamento e ruptura de relações . Note-se, por outro lado , como Ferreira Alves acentua a gravidade da ofensa , pelo alargamento dos alvos prestigiados que diz terem sido também atingidos. Esta convocação, como testemunha abonatória de sua pessoa e reputação (da sua face positiva ), do proprietário e fundador do jornal , conhecida figura da política e da indústria mediática portuguesa, não é inocente . A carta apontava, até aí , para um corte de relações com o jornal e logicamente à sua demissão de colaboradora. Não o fez, porém , em nome do «respeito e longa amizade » que confessa manter com Pinto Balsemão. E termina por revelar , reforçando a auto-defesa e a auto-estima das suas faces (de refiguração, chamar-lhe-ia Goffman), que continua, todavia , como colunista do Expresso , porque foi o próprio que lhe pediu para ficar .
A carta de Ferreira Alves mereceria ser analisada sob outros aspectos . Ficará para outra oportunidade . Deixem-me, todavia , citar só mais esta passagem . Nela encontramos um comentário que , além do mais , reflecte e confirma, em parte , o título desta palestra : «Certas notícias e opiniões dizem mais sobre quem as escreve e a sua honra […], do que sobre as vítimas desses escritos , que é o que eu tenho sido, em silêncio , estes dias todos ».
É a preocupação com a construção e protecção das faces , de figuração – de face work, segundo Goffman - que leva algumas figuras , mais ou menos públicas, a criarem gabinetes de imagem . A seguinte passagem , retirada de uma crónica de José Júdice (publicada no 24 Horas , em 10 de Março de 2000, sobre o então presidente da Câmara Municipal de Cascais), apesar de altamente crítica e irónica, é um exemplo , ao mesmo tempo de figuração (o facto) e de desfiguração (o comentário ):
«Ninguém poderá […] levar a mal que se questione por que razão o Dr. Judas […] precisa de quatro assessores que custam mil contos por mês para lhe tratarem da imagem . A explicação mais plausível […] é que serão todos muito ciosos das suas funções profissionais . O “assessor de imagem ” ajeita-lhe a gravata e transporta a fita métrica para conferir se a barba é mesmo de três dias , a fotógrafa fotografa, e os dois assessores para a “comunicação social ” distribuem as fotos pelo público .»
Ao contrário dos auto-elogios, encontram-se, com frequência, no sistema de cortesia , regras que jogam, sobretudo , contra as faces do locutor . Encontram-se nos princípios II.B. O princípio II.B.1 propõe que , a ter de se fazer o nosso próprio elogio , se recorra, por exemplo , a processos de indirecção discursiva ou a figuras retóricas , como o litotes e a metáfora , ou a outros processos de substituição ou minimização auto-referencial. Se, por exemplo , um aluno , perante um 18 obtido à disciplina de Linguística, afirma «Não tirei má nota , não senhor !», o que ele está a fazer é a ser cortês , segundo este princípio , recorrendo à figura de litotes, que consiste em sugerir uma ideia pela negação do seu contrário .
– Ó da casa ! Ó da casa !
Esperou, tornou a esperar e ninguém lhe respondeu…
– Ó da casa !... Sou eu , a comadrinha raposa , meu rico senhor D. Salamurdo! Sou eu !
O mesmo silêncio […].
– Ando negra de fome ... Por alma das suas obrigações , dê alguma coisinha!
– Ouvi dizer que Vossa Senhoria pilhou pata ... Sou a Salta-Pocinhas, sua amiga leal , verdadeira!
Fixando-nos apenas nas formas nominais de tratamento , verifica-se, como sintetizo e esquematizo no quadro seguinte , que a raposa começa por ocupar lugar social relativamente alto e distanciado, ao dirigir-se ao teixugo. A raposeta não é, porém , bem sucedida com tais chamamentos. Degrada, por isso , a sua face positiva , procurando assim aproximar-se do alocutário. Mas nem assim o consegue. Auto-degrada, então , ainda mais a sua face positiva , num último esforço estratégico . (Negritos e setas curvas contínuas). Ao mesmo tempo , vai dirigindo tratamentos progressivamente honorificantes da face positiva do teixugo. (Itálicos e setas curvas tracejadas.)
Dá-se, assim , uma total inversão de lugares (a nível taxémico, isto é, das relações de poder ), depois de ter passado , num primeiro movimento discursivo-textual de aproximação (a nível proxémico, isto é, das relações horizontais ), por uma situação de relativo equilíbrio . Mas depois , continuando o movimento , distancia-se do alocutário, por um processo de auto-humilhação. Ao nível do eixo de cortesia , a raposa , ao degradar-se, é descendentemente mais descortês para consigo própria e, ao honorificar o teixugo, é ascendentemente mais cortês para com ele .
03. Para concluir
É tempo de terminar . Faço-o, retomando o fio condutor que ao longo desta exposição procurei seguir . A cortesia verbal deixou de ser apenas uma questão de etiqueta , a cumprir apenas em contextos formais , e com interesse apenas para chefes de cerimónia ou protocolo . Está presente em todas as práticas discursivo-textuais, incluindo as informais . É hoje , por isso , de novo reconhecida, mesmo ou sobretudo pela sua ausência , nas sociedades contemporâneas. É, por outro lado e também por isso , tema pertinente no âmbito das ciências da linguagem , em geral , e da pragmática linguística e análise dicursivo-textual, em particular . A cortesia linguística é, contudo , um domínio interdisciplinar, onde se cruzam mecanismos linguísticos e discursivo-textuais que os interlocutores (efectivos ou não ) utilizam em contextos de comunicação face-a-face ou a distância , em directo ou em diferido. Procura-se com eles estabelecer boas, indiferentes ou más relações , preservando ou destruindo, mutuamente, em maior ou menor grau , as representações , as imagens ou faces que cada um tem, constrói e dá a ver de si próprio e do outro , interlocutor (es) ou terceiro (s).
[Nota:
O leitor encontrou, ao longo deste texto, repetições, por um lado, da apresentação do modelo teórico adotado e, por outro, descrição de uma ou outra prática discursivo-textual já analisada em textos anteriores. Isto fica-se a dever ao facto de continuar a reproduzir, neste blogue, estudos sobre (des)cortesias verbais, inéditos ou não, por mim elaborados há já alguns anos. Além disso, tais repetições ajudarão na leitura deste post e do anterior, bem a consulta dos textos já aqui publicados.]
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