sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

DIZ-ME COMO FALAS / DIR-TE-EI COMO ÉS. Comunicação, discurso e cortesia (I).

[O texto que, neste e no próximo post reproduzo, constitui uma versão reduzida e escrita de uma palestra que proferi na Escola Superior de Ciências Empresariais de Valença, do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, no dia 12 de Novembro de 2004. Deveria ter sido publicado, depois, no n.º 3 da revista IPVC-Academia. Tal número, porém, nunca chegou a ser publicado. Entretanto, a revista terminou.]


 
David F. Rodrigues
[ESE-IPVC]


                Ao Professor A. Lima de Carvalho


00. Introdução

As questões que abordarei neste estudo situam-se no âmbito da cortesia linguística. A cortesia linguística é o domínio que, no âmbito das ciências da linguagem, estuda as cortesias e as descortesias verbais. Estas, umas e outras, constituem um dos três ramos em que se podem dividir os comportamentos corteses e descorteses. Os outros dois são os paraverbais e os não-verbais. Cabe referir, todavia, que esta distinção é de natureza analítica. De facto, sendo certo que se podem praticar actos corteses e descorteses apenas não-verbais (pense-se em determinados gestos e movimentos corporais), dificilmente se poderão realizar cortesias ou descortesias verbais que não sejam acompanhadas de comportamentos paraverbais (pense-se na entoação e elevação da voz) e mesmo não-verbais (pense-se nos sorrisos ditos amarelos e simpáticos). Além disso, os actos corteses e descorteses não-verbais são acompanhados, geralmente, de cortesias verbais e paraverbais (por exemplo, quando, numa porta, cedemos e oferecemos, com gesto adequado, a prioridade, acompanhada de um “faça favor de passar”). É, porém, das cortesias e descortesias verbais que apenas falarei. Por uma questão de tempo, mas também porque os discursos-textos que utilizarei, sendo escritos, não apresentam construções e descrições significativas de cortesias ou descortesias, ao nível do paraverbal e do não-verbal.
Retomo a noção de cortesia linguística para observar que, quando se estudam as cortesias e as descortesias verbais, em Português como noutras línguas, verifica-se que elas (umas e outras) são sempre em maior número e com realizações linguísticas e discursivo-textuais muito mais complexas do que as fórmulas e regras que os manuais de etiqueta e boas maneiras prescrevem e os guias de conversação e as gramáticas normativas registam. Nesse sentido, muito embora cortesia linguística e cortesia verbal sejam utilizadas como sinónimos, reservo a expressão cortesia/descortesia verbal para as fórmulas, formas e construções que uma comunidade de falantes-ouvintes e escreventes-leitores reconhece e utiliza como tais. Encontramos o seu registo (sobretudo das cortesias) nos referidos manuais, guias e gramáticas. A cortesia linguística tem, todavia, um objecto mais amplo. É não o estudo científico das cortesias e descortesias verbais reconhecidas por uma comunidade, mas também de todas as outras formas e construções, ainda que não socialmente reconhecidas como corteses ou descorteses. Além disso, incluo, na sua definição, a descrição dos mecanismos linguísticos e discursivo-textuais que estão subjacentes e se manifestam, explícita ou implicitamente, em tais construções, bem como as relações pessoais e interpessoais que com elas os interlocutores (falantes e escreventes) estabelecem e desenvolvem, positiva ou negativamente, entre si e em relação a terceiro(s). A cortesia linguística é, assim, uma teoria que, partindo da análise dos fenómenos verbais corteses e descorteses, visa determinar, descrever e estabelecer os princípios que explicam esses comportamentos. Na noção cabem também, por isso, os diferentes modelos teóricos e metodológicos propostos pelos linguistas que se dedicam ao estudo da Linguística Pragmática.
A cortesia/descortesia verbal é um fenómeno complexo, dada a sua natureza profundamente psico-social e sócio-cultural. Integra, por isso, questões ligadas a várias ciências sociais, com relevo para as da comunicação humana, a entender, necessariamente, como interacção, que em práticas discursivo-textuais, adequadas às situações e ao seu desenvolvimento (contexto), se concretiza. O estudo das cortesias e descortesias verbais, isto é, a cortesia linguística, inscreve-se, assim, com a extensão que lhe atribuímos, no quadro teórico da disciplina Análise do Discurso.
Discorrer, isto é, falar e escrever sobre um determinado assunto, em privado ou em público, é sempre interagir, isto é, entrar e estar em comunicação. Necessário é, por isso, ao iniciar, desenvolver e concluir um processo comunicativo, ter na devida conta tanto o outro, como nós próprios. O outro é, antes de mais, o interlocutor, mas podem ser também o(s) simples ouvinte(s) e assistente(s) [conhecido(s) ou estranho(s), consentido(s) ou não], bem como aquilo de se que fala ou escreve, que podem ser todas ou cada uma destas entidades. Tais atenções reflectem-se nas fórmulas e construções que, mais ou menos corteses, de forma mais ou menos explícita, realizamos nas práticas discursivo-textuais que produzimos e recebemos. Daí que os actos de falar e escrever sejam sempre, por outro lado, também formas de exposição pessoal e interpessoal. Quem fala ou escreve expõe-se, isto é, mostra-se, dá-se a ver e a conhecer, pelo dito, pelo não dito, pelos modos devidos ou indevidos de dizer. Cabe tudo isto no âmbito da cortesia/descortesia verbal, a qual exige, assim, uma permanente vigilância sobre os discursos-textos que se realizam. De uma competência comunicativa e discursivo-textual, portanto, se trata. Parafraseando, por isso, a conhecida sentença popular, direi diz-me como falas, dir-te-ei como és.

 
01. Das acepções de cortesia/descortesia

É a vida em sociedade que nos ensina a ser corteses e descorteses. Por experiências próprias e alheias, aprendemos a praticar e a reconhecer cortesias e descortesias. Os dicionários registam termos e definições que correspondem às concepções lexicais mais ou menos activas que de umas e outras possuímos. Nem sempre completas e coincidentes, como é natural, que não somos, felizmente, enciclopédias ambulantes. Convirá, todavia, começar por recordar o que, entre nós, se entende por cortesia e o seu antónimo. Pode-se recorrer, para o efeito, aos manuais de etiqueta e boas-maneiras, ou aos dicionários. Os primeiros limitam-se à apresentação das regras a cumprir em situações (sobretudo) formais de convivência social. Os segundos registam as acepções e definições que o termo, sinónimos e antónimos recebem numa dada comunidade. Além disso, nos manuais como nos dicionários, não se encontra descrito nem definido, com rigor e extensão, o significado que, em Análise do Discurso, se faz do termo. Encontrar-se-á em dicionários específicos [vg. Charaudeau & Maingueneau, 2002]. É, porém, minha intenção contribuir, com este estudo, para uma mais clara e precisa definição não do que são comportamentos verbais corteses e descorteses, mas também do que é a cortesia linguística. Partirei, não obstante, das definições lexicais de cortesia. Servir-me-ei, apenas, das registadas no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, por considerar que nele se encontram as principais acepções de cortesia em Português de Portugal.

As três primeiras definições que o dicionário regista são:

«1. Acção ou resultado do que é cortês. 2. Comportamento, modo de agir próprios de cortesão, pessoa que vive na corte do reino. 3. Comportamento, modo de agir de alguém que é delicado ou muito bem-educado.» [Mantenho, nesta como em todas as citações presentes neste estudo, a ortografia das edições consultadas.]

                Como sinónimos, o dicionário remete para delicadeza, educação e polidez. E, como exemplos, as frases «Os donos da casa recebiam com muita cortesia os convidados. Os cavalheiros reconhecem-se pela cortesia
Prosseguindo, o dicionário regista, nas duas definições seguintes, que cortesia significa também:

«4. Acto de receber, saudar ou cumprimentar alguém com mesuras, cerimónias e etiqueta, vénias... […] 5. Acto de cumprimentar alguém, inclinando o corpo ou a cabeça, tirando o chapéu, ou fazendo outro gesto que indique saudação

 Acrescenta, como exemplos de 4, as frases «Abriu à senhora a porta do carro como modo de cortesia. Uma regra de cortesia. O beija-mão é uma forma de cortesia.» No final de 5, remete para os sinónimos mesura, reverência e vénia.
A definição de cortesias (atenção ao plural) ocupa a definição

«6. Cumprimentos que, na praça de touros, os cavaleiros, capinhas… fazem ao público e às autoridades, antes e depois da corrida

Cortesia significa, ainda, «O que é oferecido ou dado por qualquer organização comercial ou industrial a clientes, como forma de promoção de um produto». Exemplo: «O rádio foi uma cortesia que lhe fizeram, quando comprou o carro.» São registadas, ainda, as locuções «por cortesia», com o significado de «por delicadeza», «delicadamente», e «por mera cortesia», com o significado de «apenas para cumprir as formalidades».
               O Dicionário da Academia regista, por último, as construções «fazer cortesia com o chapéu alheio» - que significa «mostrar-se generoso à custa do dinheiro, dos haveres… de outrem» - e «ser cavalo de cortesias» - significando «ser escolhido para receber hóspedes, fazer um discurso de recepção.» [DLPCACL (I Vol.), 2001: 999]

               As definições e exemplos dos termos pertencentes à família de cortesia (vg. cortês e cortesmente), dos seus sinónimos (vg. delicadeza, delicadamente e delicado; educação, educadamente e educado; polidez, polidamente e polido, entre outros) e dos seus antónimos (vg. descortesia, descortês e descortesmente; indelicadamente, indelicadeza e indelicado; impolidamente, impolidez e impolido, entre outros) coincidem, no essencial, nas concepções que se tem com os termos cortesia e descortesia. Cabe, todavia, referir que, no dicionário, não se distingue, claramente, comportamentos verbais corteses e descorteses, de comportamentos paraverbais e não-verbais. Fica-se, aliás, com a ideia de que cortesia tem como principal referência virtual os comportamentos não-verbais. O excelente Dicionário Houaiss [Houaiss, 2001: 2250], porém (brasileiro - refira-se), regista, ao definir polidez, a natureza verbal e linguístico-discursiva (se bem que incompleta) do termo, ao referir que é uma

«característica do discurso, que indica cortesia, gentileza, civilidade etc., do locutor (autêntica ou não), e que se expressa esp[ecialmente] nas formas de tratamento, em expressões que atenuam o tom autoritário do imperativo (como por gentileza, por favor, se me permite etc.) e outras fórmulas de etiqueta lingüística».

Vem a propósito observar que os brasileiros preferem o termo polidez e que, em Portugal, se usa sobretudo o termo delicadeza. A minha preferência terminológica é por cortesia. O termo, além da sinonímia, remete, etimologicamente, para a origem e história dos comportamentos assim considerados (cortesia > cortês + ia; cortês > corte + ês). A corte era, como se refere num interessante livro intitulado Codigo do Bom Tom, ou Regras de Civilidade e de Bem Viver no XIXº Século, «a melhor escola para aprender as boas maneiras, as expressões escolhidas, a polidez, a urbanidade e um certo ar e bom tom, que annuncião o illustre nascimento e a boa educação.» E isto, apesar de as cortes e os palácios serem, segundo observa o autor, os lugares «onde mais reina a intriga, a duplicidade e a lisonja», «defeitos» de palacianos e cortesãos aduladores, considerados, por isso, «os maiores inimigos dos Reis e dos povos» [Roquette, 18592: 11]. O termo cortesia passou, com o tempo, a designar a vida e a sã convivência social. Para a vida da corte e dos palácios ficou o termo cortesania. Esta clara distinção encontra-se no Dicionário Morais [Silva, 195110 (vol. 3): 610]:

«Cortesia é a demonstração externa de respeito, comedimento, urbanidade e bom modo, para com todos os nossos semelhantes, conforme prescreve a boa educação. Cortesania é a prática das civilidades da corte e o requinte da cortesia segundo os usos, estilos e maneiras mais apuradas dos que frequentam a corte. O primeiro é próprio do homem cortês; o segundo é próprio do cortesão

Numa concepção alargada de cortesia, cabem, assim, todas as acepções lexicais antes referidas. Cortesia é, assim, um arquilexema que recobre significados expressos (além dos referidos), por outros termos, como amabilidade, bons modos, bom tom, cavalheirismo, civismo, conveniência, honraria, deferência, modéstia, respeito, tacto, trato, urbanidade, etc.

Para designar o inverso da noção de cortesia, utilizo, morfo-logicamente, o termo descortesia. Na sua definição extensiva, incluo tanto a ausência de comportamentos corteses como os descorteses. A calúnia, a injúria e o insulto serão as suas expressões máximas e por isso mais nítidas, embora não as mais frequentes. As cortesias são a regra, as descortesias a excepção. Como curiosidade, eis a lista das descortesias que, em meados do século XIX, o referido Código do Bom Tom inventariava: «calumnia, maledicencia, murmuração, mentira, graças pesadas, palavras injuriosas, revelação de segredo confiado, espirito de contradicção, porfias, teimas, remoques, chascos, sotaques, graçolas, dichotes, chufas, zombarias e facecias indecentes ou burlescas» [Roquette, 18592: 149].


02. Da cortesia linguística

O estudo da cortesia/descortesia verbal, ou seja, a cortesia linguística, será sempre um estudo simultaneamente transcultural e translinguístico. Transcultural, porque os comportamentos corteses e descorteses resultam, afectam e atravessam, a nível psico-social e sócio-cultural, os indivíduos duma comunidade, ainda que em graus, quantidade, conhecimento, consciência, desempenhos e avaliações diferentes. Translinguístico, porque são considerados não os valores de cortesia e de descortesia constituídos em língua ou sistema, mas também os valores pragmáticos da mesma natureza que fórmulas, formas e construções adquirem, nas diferentes situações e práticas discursivo-textuais realizadas.
As cortesias e descortesias verbais são desempenhos, portanto, de uma competência discursivo-textual, que é, por sua vez, uma dimensão da competência de comunicação. Comunicar verbalmente não é construir frases gramaticalmente correctas e mais ou menos bem alinhadas, que, todavia, quando tal não acontece, são entendidas como descortesias. É por isso que, cometido um lapsus linguæ, uma calinada, um locutor (cortês) pede desculpa e autocorrige o lapso. O mesmo acontece, quando se tem consciência de que o discurso-texto produzido não está devidamente construído. «Desculpa o desarrazoado, estou com pressa, e se deixo para amanhã... é o costume!», escrevia, há tempos, uma colega, no fim de carta electrónica. De facto, comunicar verbalmente é também saber interagir, pôr em comum, como a própria etimologia da palavra indica. É, por isso, saber realizar práticas discursivo-textuais, cumprindo, melhor dizendo, sabendo cumprir, consoante os contextos e a sua dinâmica, as normas sociais, culturais, gramaticais e discursivas que governam a vida duma sociedade. Saber comunicar verbalmente é, assim, «saber viver», que através dum «saber dizer» (que é também um «saber fazer») se concretiza. Em resumo, como escreve Bury [1995: 531]:

«Le langage est un élément primordial dans le domaine du savoir-vivre: en effet, la compétence linguistique rejoint souvent l’exigence de la distinction. Le langage est à l’évidence une des clés de la “rhétorique sociale” que constitue le savoir-vivre. Le savoir-vivre est en effet un “art de persuader” dont le langage est un vecteur essentiel, avec les gestes et les “manières” en générale. Le langage est aussi le lieu par excellence de la reconnaissance sociale.»

Todas as práticas sócio-verbais (orais ou escritas, formais ou informais, correntes ou ficcionais) são sempre, por isso, percorridas e mais ou menos explicitamente marcadas por fórmulas, expressões e construções de cortesia, destinadas ora a atenuar os comportamentos descorteses, voluntária ou involuntariamente praticados, ora a produzir comportamentos corteses e a intensificá-los. De referir que as descortesias verbais também podem ser intensificadas (E de que maneira!), tanto através de actos descorteses verbais, como paraverbais e não verbais. Lembrem-se, por exemplo, os palavrões, o tom de voz e os gestos manuais, uns e outros altamente ofensivos, com que alguns automobilistas, por exemplo, reagem ao comportamento de outros condutores e mesmo de pobres peões.
Entendidos como estratégias, os comportamentos corteses visam, ao nível as relações interpessoais, estabelecer, manter ou recuperar proximidades e equilíbrios, enquanto os comportamentos descorteses visam estabelecer, manter ou acentuar distâncias e desequilíbrios. Acontece, porém, que tais comportamentos, uns e outros, servem também para alcançar fins ou efeitos não imediatos de cortesia ou descortesia. São utilizados, então, como cortesias ou descortesias estratégicas, isto é, como meios destinados a atingir outros fins, confessados ou inconfessados, e mesmo inconfessáveis. Neste sentido, as cortesias e as descortesias verbais funcionam como processos retóricos de argumentação discursivo-textual. Com efeito, afirmava , nos princípios do século passado, Charles Bally [(1913) 19653: 21]:

«La langue de conversation est régie par une rhétorique instinctive et pratique; elle use, à sa manière, des procédés de l’éloquence, ou, pour mieux dire, c’est à elle que l’éloquence a emprunté ses procédés. En effet, pour l’énoncé des moindres choses, il faut que la pensée devienne une action et s’impose par le langage; il faut que celui-ci se fasse tantôt pénétrant, incisif, énergique, volontaire, tantôt vibrant, passionné, tantôt humble et suppliant, souvent même hypocrite.»

[Continua]
[As referências biográficas aparecerão no final do próximo post.]

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