[O texto que reproduzo, neste post, com as adaptações à sua edição neste espaço, foi primeiramente apresentado ao XIX Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística (Lisboa, 1, 2 e 3 de Outubro de 2003). Encontra-se publicado no volume das respectivas Actas (…), Lisboa, 2004, pp. 653-665.]
David F. Rodrigues
ESE-IPVC
«Dans la perspective d’une théorie des actes de langage, l’interjection ne peut plus être considérée comme un phénomène marginal ou insignifiant. Elle acquiert un statut central : c’est le lieu privilégié où se marque l’interaction des individus.» (Sirdar-Iskandar, 1980: 161)
Procurar-se-á analisar , nesta comunicação , tais efeitos , no quadro geral do Cortesia Linguística, entendida , por um lado , como uma dimensão fundamental da competência discursivo-textual e, por outro , como domínio linguístico de estuda dos comportamentos verbais corteses e descorteses.[1]
A teoria de descrição e análise adoptada (e adaptada) é a proposta por Catherine Kerbrat-Orecchionni. Trata-se de um modelo teórico ecléctico, como se verá, e que a conhecida linguista expõe, sobretudo , em Les Interactions Verbales II (1992), com versão resumida ao essencial , em La Conversation (1996).
As interjeições serão entendidas, nesta comunicação , independentemente da sua complexidade constitutiva e grau de autonomia referencial (geralmente muito reduzida ou mesmo nula ), como fórmulas discursivo-textuais que também podem realizar , consoante o contexto e cotexto das práticas em que ocorram, actos directores ou subordinados de cortesia e/ou de descortesia . Actos, uns e outros , intencionalmente orientados para lesar (ferir , ofender , ameaçar ) ou para valorizar (elogiar , preservar ) as faces do(s) interlocutor (es) e/ou de terceiro (s), presente (s) ou ausente (s), encontre(m)-se o(s) primeiro (s) em situação efectiva de interlocução ou não .
A Cortesia Linguística, enquanto modelo de descrição e análise , parece ser domínio ainda pouco estudado e conhecido , em Portugal.[2] Começar-se-á, por isso , pela sua apresentação teórica , ainda que necessariamente breve . Observe-se, entretanto , o esquema seguinte (Fig. 1), onde se procura situar a Cortesia Linguística no quadro da Cortesia Geral .
A Cortesia Verbal constitui um ramo da Cortesia Geral . Esta inclui também as cortesias e descortesias não verbais e paraverbais. Os comportamentos socioverbais, realizados em práticas discursivo-textuais, constituem o objecto da Cortesia Linguística, onde cabem também as teorias e modelos de sua descrição e análise , as regras e regularidades, inventariadas e descritas por gramáticos e linguistas da língua ou sistema , bem como o conjunto das formas e fórmulas verbais corteses e/ou descorteses. É por isso que se entende a Cortesia Linguística, por um lado , como uma competência discursivo-textual e, por outro , como o estudo translinguístico das cortesias e descortesias verbais .
Todas as práticas socioverbais [orais ou escritas , formais ou informais , correntes ou ficcionais (incluindo as literárias)] são expressões , ou formas e construções que se apresentam sempre mais ou menos marcadas, explícita ou implicitamente, por cortesias e/ou descortesias . As cortesias verbais destinam-se ora a atenuar comportamentos descorteses, ora a produzir e/ou a intensificar comportamentos corteses. As descortesias podem ser também intensificadas através da repetição e/ou acumulação de actos verbais , paraverbais e não verbais descorteses.
É difícil não se ter em consideração , pelo menos depois dos estudos do «Círculo Bakhtine» (Bakhtine1970 e 19926, e Bakhtine & Volochínov, 1981 e 1992), a natureza intrinsecamente interaccional da linguagem verbal , quando se estudam os fenómenos discursivo-textuais e os mecanismos que lhes estão subjacentes . As formas e construções corteses e/ou descorteses encontram-se, por isso , tanto nas interacções verbais em sentido estrito (nas chamadas interlocuções , diálogos , conversas ou conversações ), como nas interacções verbais em sentido lato (nas chamadas alocuções , ou comunicações ditas – impropriamente ditas, diga-se - unidireccionais). Ainda que seja nas primeiras onde se encontram, em maior número , variedade e grau , os actos de cortesia e/ou de descortesia .
Catherine Kerbrat-Orecchioni constrói o
O modelo de Kerbrat-Orecchioni apresenta uma concepção mais optimista das relações humanas. Considera, por isso , que nas interlocuções não se realizam apenas Actos Ameaçadores de Face (FTA, mantendo-se a sigla de Face Threatening Act), como defendem Brown & Levinson, que é preciso evitar ou atenuar , mas também Actos Valorizadores de Face (FFA, Face Flattering Act), noção complementar daquela. Por outro lado , a linguista francesa precisa as noções de cortesia negativa e de cortesia positiva , pouco claras na teoria de Brown & Levinson. Nesse sentido , considera a primeira de natureza abstencionista (não realizar actos descorteses), ou substitutiva e compensadora (se o locutor , não podendo evitar um FTA, o substitui por outro menos lesivo e/ou compensa, de alguma maneira , os danos que com ele possa causar ). A cortesia positiva , por seu turno , é de natureza produtiva , porque serve para realizar um ou mais FFA’s, essencialmente orientados para o alocutário. Esclarece, ainda , as noções de face negativa e de face positiva , fazendo corresponder à primeira os territórios goffmanianos e à segunda o narcisismo , dir-se-á melhor , a auto-estima, que todo o ser humano possui, em maior ou menor grau .
Articulando e cruzando os pares ou eixos Princípios orientados para as faces do A[locutário] vs. Princípios orientados para as faces do L[ocutor], e, dentro destes, as noções de Cortesia Negativa vs. Cortesia Positiva , e de Face Negativa vs. Face Positiva , verifica-se que , numa situação diádica interlocutiva, são sempre quatro (pelo menos ) as faces em presença e alvo de potenciais ameaças (FTA’s) ou valorizações (FFA’s). Assim , um FTA ou um FFA, ao atingir , directamente (setas de cauda contínua ), uma ou ambas as faces de A ou de L, atingem sempre , também , mas indirectamente (setas de cauda tracejada), a(s) própria (s) face (s) daquele que fala ou escreve.
Os meios e mecanismos de construção e expressão de cortesia e descortesia verbal agrupam-se em actos de cortesia negativa (isto é, que atenuam FTA’s) e de cortesia positiva (isto é, que constituem FFA’s), formando os respectivos conjuntos categorias abertas . Os primeiros constituem realizações substitutivas ou acompanhantes de FTA’s, enquanto os segundos são realizações produtivas de FFA’s. Trata-se, porém , num caso como noutro, de processos cumuláveis, fenómeno que nos leva a estabelecer uma distinção entre FFA de Cortesia Negativa , isto é, que acompanha a realização de FTA’s, e FFA de Cortesia Positiva , isto é, que acompanha a realização de FFA’s. O primeiro serve, assim , para intensificar a atenuação de um FTA, enquanto o segundo serve para intensificar a valorização de FFA’s. Trata-se, no fundo (e em síntese ), da atenuação de descortesias , no primeiro caso , e da intensificação de cortesias , no segundo .
É neste quadro teórico da Cortesia Linguística, brevemente esboçado, que se vai situar , agora , a problemática das interjeições portuguesas e dos valores corteses e/ou descorteses que elas podem expressar , consoante os contextos e cotextos em que ocorram. O seu uso , sobretudo daquelas cuja realização mais se aproxima dos sons instintivos produzidos pelo homem [4], («gritos articulados de sentido afectivo», chama-lhes Gonçalves, 2002: 351), tais como Ah!, Eh !, Ei !, Hã!, Nh!, Ai!, Ui !, etc., é socialmente visto como uma descortesia ou , pelo menos , como um comportamento socioverbal pouco cortês . Os manuais de bom tom , etiqueta ou boas maneiras prescrevem que
«Se não percebemos qualquer coisa que nos digam, nunca deveremos perguntar “O quê ?”, e muito menos “Hã?”, pois há outras expressões bastante mais delicadas, como por exemplo , “Desculpe, não percebi o que disse”, ou simplesmente “Como ?”» (Gião, 1988: 144)
A propósito , e como exemplo , veja-se a reacção de Rola , em Terras do Demo , ao emprego duma interjeição deste tipo , pela mulher :
«- Dize cá , Florinda [...], se hoje larapiasses dinheiro , que é um supor , e tivesses de o esconder , onde é que o metias?
- Sei lá ! [...] Num buraco .
- Mas ouve, cabeça de arolo, há esconder e esconder . Esconder coisa de que ninguém deu fé e de que ninguém anda à coca , é um cantar ; esconder coisa que deu nas vistas e que escape ao lúzio do mais pintado , é outro cantar . Estás percebendo?
- Ham?
- Ham, zurram os burros .
- Entendo-te lá , homem !
- Se suspeitasses que vinham a descobrir a ariosca, onde o metias?»
(RIBEIRO , 1983b: 98. Itálicos da nossa responsabilidade.)
A intervenção de Rola , comentando e censurando o uso da interjeição Ham?, mostra que o uso destas fórmulas não são próprias de gente , mas de animais . Ou seja, o seu emprego é uma descortesia , não só em relação ao alocutário, mas também em relação ao próprio locutor , conforme resulta da metáfora depreciativa utilizada na réplica .
Se se analisar uma lista das interjeições portuguesas, verificar-se-á que várias delas apresentam valores semântico-pragmáticos já lexicalizados e gramaticalizados de cortesia ou de descortesia . Além disso, umas estão mais orientadas para a valorização das faces dos alocutários (FFA’s), enquanto outras estão mais orientadas para ameaça dessas mesmas faces (FTA’s). Isto , em contextos e cotextos não irónicos, como é evidente .
Reúnem-se, no quadro seguinte (Fig. 3), as interjeições que se consideram orientadas para as faces do alocutário (A-orientadas), ora para as valorizar (FFA’s), ou para as ameaçar (FTA’s). Há, porém , outras interjeições que , mais uma vez e sempre consoante os co(n)textos , tanto podem ser FFA’s como FTA’s. Trata-se, no primeiro caso , de interjeições que , proferidas com o sentido de, por exemplo , advertir alguém de perigo eminente , ou de ajuda e incentivo a acção, realizam ou acompanham FFA’s. No segundo caso , visam efeitos contrários e realizam ou acompanham a realização de FTA’s. Colocam-se, na coluna «Mistas», tais interjeições .[5]
Estas interjeições constituem apenas uma selecção das inúmeras que é possível encontrar nas práticas discursivo-textuais em Português Europeu . Descrever-se-ão, de seguida , os valores que uma interjeição , de cada um dos conjuntos , pode expressar , ao nível da cortesia ou descortesia .
Considere-se, por exemplo , a interjeição «Alto !», acompanhada ou não de partículas de reforço e apelo . O DLPACL dá dela as seguintes definições :
«1. Voz de comando usada para mandar parar ou suspender determinada acção ou actividade. Alto !, gritou o polícia , levantando a mão . 2. Usa-se para manifestar desacordo com o que acaba de ser dito e para interromper o discurso . alto aí , o m[esmo ] que alto . Alto aí que esse carro é meu ! alto lá , o m. que alto . Alto lá , não te admito que me fales dessa maneira .» [DLPCACL, 2001 (vol. I): 191]
As definições 1 e 2 podem situar a utilização desta interjeição , no âmbito dos fenómenos descorteses, uma vez que se trata de actos directivos que lesam, de algum modo , as faces do alocutário, ao serem realizados sem atenuadores. Cabe observar , porém , que o primeiro exemplo não cabe nos fenómenos da (des )cortesia , por se tratar de uma ordem dada por uma autoridade legítima (um polícia ) e em co(n)texto presumivelmente adequado.
A definição 1 pode verificar-se, todavia , noutras situações , ainda com objectivos ilocutórios directivos, mas com efeitos perlocutórios diferentes , ao nível dos benefícios que podem reverter ou não para o alocutário. Imagine-se, por exemplo , o seguinte co(n)texto de ocorrência . Um condutor pára o automóvel numa via inclinada, descuida-se e a viatura começa a deslizar em direcção a uma parede . Um transeunte apercebe-se e grita , batendo no veículo :
(1) Alto ! Alto !
O aviso preocupado interjectivo é, neste caso , um acto A-orientado cortês , pois o efeito desejado é a protecção da face negativa (o «território » automóvel ) do alocutário. Trata-se, por isso , dum FFA, ao nível do efeito , cuja realização exige, como contrapartida , um acto reparador da parte do alocutário. Um «Obrigado !», pelo menos , se competente for, minimamente, no conhecimento e exercício da cortesia .
Imagine-se, agora , que o peão se encontra entre a viatura e a parede . O grito interjectivo «Alto !» seria descortês , um FTA, uma vez que o efeito desejado reverteria a seu favor , na protecção da sua face negativa (o «território » corporal ). O acto reparador formulado pelo condutor já não seria de agradecimento, mas de desculpa . Ainda que devesse também agradecer , pois que o aviso ter-lhe-ia evitado responsabilidades civis e, eventualmente , prejuízos materiais . Neste sentido , a última ocorrência da interjeição é, numa primeira instância , descortês para o automobilista e cortês para o peão , mas , numa segunda instância , também cortês para o distraído condutor .
A definição 2, referindo que a interjeição «Alto !» se usa para manifestar desacordo e/ou interrupção da intervenção do interlocutor , situa as suas ocorrências no âmbito da descortesia . Se não forem acompanhadas de atenuadores, evidentemente . A interjeição é, nesses casos , um FTA que lesa as faces positiva e/ou negativa do alocutário, tratando-se, por isso , de actos mais ou menos descorteses. O sentido geral para a descortesia de tal interjeição prender-se-á com o facto de ela , como informa o Dicionário , ter a sua etimologia na forma alemã «halt!, imp[erativo] de hakten», que significa parar . [DLPCACL, 2001 (vol. I): 191] Valor semântico-pragmático que se mantém em Português e que , por isso , é também utilizada como forma substituta do imperativo , no sentido de proibição , isto é, de acção ou actividade física ou verbal que não deve ser iniciada ou concluída.
As interjeições A-orientadas da coluna dos FFA’s realizam actos de cortesia positiva , através dos quais L valoriza e/ou enriquece as faces positiva e/ou negativa de A. É o caso das interjeições que expressam, em relação a A, por um lado , felicitações, elogios , cumprimentos , incitamentos , etc., e, por outro , as que expressam ou compartilham sentimentos de pesar , de dor , de compaixão , etc. Sejam, por exemplo , as interjeições «Viva !», para o primeiro conjunto , e «Coragem !», para o segundo .
Informa o Dicionário que «Viva !» é uma interjeição que «traduz aclamação , saudação festiva , júbilo », como , por exemplo em
(2) Viva ! A nossa equipa venceu o campeonato . [DLPCACL, 2001 (vol. II): 3769]
Neste caso , a interjeição é um FFA: trata-se duma valorização das faces dos adeptos , no conjunto dos quais se inclui L.
(3) Coragem !, tudo se há-de resolver . Coragem !, a dor vai passar . [DLPCACL, 2001 (vol. I): 972]
As interjeições lexicais A-orientadas que realizam ou acompanham a realização de FTA’s são descorteses, porque constituem ameaças para as faces de A’s. Trata-se de expressões através das quais L reprova, abomina, critica, se indigna , se revolta , se distancia, etc., em relação a alguém e/ou ao seu comportamento , por um lado , ou se satisfaz, alegra , congratula, etc., com o mal que fez ou sucedeu a A, presente ou ausente , por outro .[6]
É o que se verifica, por exemplo , com o uso da expressão «Bem , bem !», que , segundo o mesmo dicionário , «exprime repreensão , censura ou reprovação», como em
(4) Bem , bem ! Olha que já sabes como elas te mordem! [ii] [DLPCACL, 2001 (vol. I): 510]
(5) Se não fosse o aquecimento central – confessava o Monsenhor – morria de frio . Era muito bem feito ! Fosse para a natureza , lá para a fora , para o frio . [DLPCACL, 2001 (vol. I): 510]
É, pois , a face positiva e/ou a face negativa de A que é mais ou menos atingida e lesada por estas interjeições . Situam-se, por isso , no âmbito dos fenómenos verbais da descortesia .
Os valores pragmáticos de cortesia ou de descortesia , que as expressões interjectivas lexicais podem exprimir , tornam-se mais evidentes , ao manipular-se o seu emprego . Procedendo-se ao teste da comutação, verifica-se, por um lado , que há expressões interjectivas que podem funcionar como quase-sinónimos, mas , por outro , que nem todas as substituições são possíveis , uma vez que tornam o enunciado agramatical ou de aceitabilidade duvidosa , ao nível da pragmática da gramática das relações de cortesia , pelo menos . Considere-se, por exemplo , a seguinte troca verbal .
(6) P1 – Então , F., já acabou o curso ?!...
F1 – Sim , sr. professor .
P2 – Parabéns !
F2 – Obrigado !
A segunda intervenção do Professor (P2) é constituída apenas pela interjeição «Parabéns !», através da qual felicita o êxito de F. Não cuidando, agora , o tipo de relação interpessoal que as formas interjectivas também expressam, pressupõem ou estabelecem, entre L e A, a interjeição de felicitação pode ser substituída, entre outras, por
(7) – Muito bem ! / Bravo ! / Viva ! / Boa! / Bestial / Sim senhor ! / Óptimo! / Estupendo ! / Magnífico ! / Excelente ! / Porreiro ! / Maravilha ! / Formidável !,
(8) – *[Cruzes ! / Livra ! / Safa ! / Ora bolas ! / Francamente ! / Essa é boa! / Credo ! / Pudera ! / Bem feita ! / Raios te partam! / Valha-te Deus !][8]
Termina-se esta breve exposição sobre os valores corteses e descorteses que as interjeições portuguesas podem expressar , com uma análise , também breve , de uma interacção verbal , inscrita no conto «Mestre grilo cantava e a giganta dormia», de Aquilino . Trata-se, como se verá, duma sequência polémica, onde as interjeições , enquanto expressão de descortesias , desempenham, por um lado , um papel importante na organização e configuração discursivo-textual do diálogo e, por outro , no estabelecimento e manutenção duma relação interpessoal conflituosa.
Co(n)textualizando-se o diálogo , temos que , irritada com o permanente cantar do Grilo , que assim não a deixava dormir o soninho descansado , a Abóbora , sua vizinha , gritou-lhe, certa noite :
[A1] – Eh lá , seu casaca ! Você não pode calar a caixa ? Com tal brequefesta como hei-de eu dormir ?!
[G1] – Ora a palerma ! – retorquiu o grilo escandalizado - Não querem lá ver , tem-se na conta de menina e é tão mona . Ah! Sua calaceira, cante, cante connosco a chamar o Sol que se não demore muito detrás dos montes e nos traga alegria e claridade .
[A2] – Estou mesmo para isso ! Olhe, sabe que mais , outro ofício e deixe dormir quem tem sono .
[G2] – Outro ofício !... Essa não é má! Saiba , sua estúpida , que eu nasci para cantar . Tenho- -o como um dever . Quando não cantar , rezem-me por alma .»[9]
(RIBEIRO , 1989: 12-13)
É com uma locução interjectiva - Eh lá – constituída por uma interjeição «grito » (Eh ) e por uma partícula enfática (lá ), seguida dum vocativo , que é um tratamento insultuoso com valor também interjectivo - seu casaca - que a Abóbora , com [A1], se dirige ao Grilo . A Abóbora visa , assim , chamar a atenção do Grilo para o comportamento que ele está a ter , visto e sentido , simultaneamente, como estranho , desagradável e reprovável. Procura , deste modo (nestes modos ), impedir que o Grilo continue a cantoria , objectivo que o acto injuntivo director - «Você não pode clara a caixa ?» - realiza, apesar de indirectamente proferido, e o acto justificativo (subordinado ) seguinte reforça - «Com tal brequefesta como hei-de eu dormir ?».
Trata-se, por isso , duma intervenção que fere a face dupla do Grilo . A face negativa , porque lhe invade o território , porque o invoca depreciativamente («seu casaca »), porque lhe dirige um acto injuntivo, ainda que seguido de justificação , e porque lhe compara, depreciativamente , a actividade a uma «caixa » e a uma «brequefesta». A face positiva , porque é a autoestima do Grilo que é ferida , não só através destes processos ora referidos, mas também através dos insultos que lhe dirige.
É também com uma locução interjeictiva – Ora a palerma ! – que inclui também um tratamento insultuoso , que o Grilo reage, expressando estranheza , indignação , desprezo e desvalorização pela Abóbora e pelo que ela acaba de dizer . Reacção emotiva intensificada, quando , em vez de responder directamente a [A1], ele convoca terceiros , através duma fórmula interlocutória também ela interjectiva - Não querem lá ver – para lhe desfigurar , de seguida , a face pública de falsa menina («tem-se na conta de menina e é tão mona ).
Cabe observar que , com esta intervenção complexa , através da qual , por um lado , com [G1], não responde directamente ao acto director de [A1] e, por outro , propõe à Abóbora um tema de conversa diferente , o Grilo acentua a conflitualidade e as relações de descortesia estabelecidas entre ambos .
O Grilo tenta continuar este «diálogo de surdos », retomando e repetindo o acto interjectivo Outro ofício !, transformando-o em acto director, quando para a Abóbora mais não era do que a expressão (interjeição ) de desagrado pela e de desvalorização da actividade do interlocutor . O acto director de [A2] continua a ser que o Grilo se cale e que a deixe dormir . Ao tomar , porém , Outro ofício ! como acto director, na intervenção [G2], o Grilo não só desvaloriza e desconsidera, mais uma vez , a face positiva da interlocutora, como também denega o objectivo ilocutório por ela pretendido. Denegação que é reforçada por mais uma locução interjectiva irónica – Essa não é má! – que , além dos valores de estranheza e discordância , funciona também como avaliação negativa da injunção tentada.
O Grilo ridiculariza, desse modo , a interlocutora, ao afirmar , ironicamente, que ela não sabe o que diz. Daí os preactos de natureza fática e enfática, também interjectivos, além de directivos e insultuosos, e por isso descorteses, com que o Grilo inicia a última intervenção – «Saiba , sua estúpida que eu nasci para cantar . Tenho-o como um dever . Quando não cantar , rezem-me por alma .» É com esta última intervenção que o Grilo responde, de facto, à questão inicialmente posta por A - «Você não pode calar a caixa ? Com tal brequefesta como hei-de eu dormir ?!» - depois repetida, por reformulação, em [A2], com «deixe dormir quem tem sono .»
Fica assim clara , a nosso ver , a importância que as expressões interjectivas têm ao nível das práticas discursivo-textuais e das relações interpessoais (corteses e descorteses) que através delas também se estabelecem e manifestam, como expressões que são também duma competência discursivo-textual de cortesia e/ou de descortesia .
[1] Cf. Rodrigues, 2002. Para uma síntese teórica da Cortesia Linguística e sua aplicação à análise de algumas formas de tratamento , corteses e descorteses, em Português Europeu , cf. também Rodrigues 2000.
[2] São de referir , não obstante , os estudos de Carreira , 1995/1997 e 2001, e de Medeiros, 1985. Este último centrado, unicamente, nas formas de tratamento , segundo uma perspectiva sociolinguística.
[3] Todos os anos indicados referem-se às datas das edições consultadas. Para os anos das primeiras edições , ver «Referências ».
[4] Herculano de Carvalho observa que está na «origem dos significantes interjectivos nas suas formas mais típicas, - como ah!, ó!, ai!, ui !, arre!, irra!, etc. – não qualquer cópia ou imagem intencional de um objecto sonoro , mas sons que , produzidos pelo homem , constituem prolongamentos externos , com carácter instintivo – não intencional , portanto -, de estados emocionais , de perturbações internas de natureza psico-física, como são o grito – de dor , de surpresa ou medo , de alegria -, o gemido , o suspiro , etc.» Estes «puros indícios , da mesma natureza que um esgar de dor , ou que os sons emitidos pelos animais » transformaram-se, com o tempo , em interjeições plenamente constituídas, ganhando um carácter intencional , uma forma constante e um valor significativo , ao serem produzidos «repetidamente pelos mesmos sujeitos numa série de actos determinados por circunstâncias similares ». (Cf. CARVALHO , 1973 (Tomo I): 194 a 198)
[5] Para a distribuição destas interjeições , segundo os seus valores de cortesia e/ou de descortesia , servimo-nos, por um lado , da nossa experiência pessoal e das definições que se encontram no DLPCACL.
[6] Os termos em itálico resultam das definições que o DLPCACL dá de interjeições que , em nosso entender , ameaçam a(s) face (s) do alocutário (FTA’s).
[7] O exemplo é retirado do livro Cavalo do Lenço Amarelo (p. 20), de Mário Castrim.
[8] O asterisco marca a agramaticalidade de todas as expressões interjectivas, naquele contexto , colocadas entre parênteses rectos.
[9] Segundo os métodos de análise das interacções verbais , numerámos os turnos de fala de cada personagem – Abóbora e Grilo – precedendo-as da respectiva inicial ([A1], [G1], etc.).
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