domingo, 23 de outubro de 2011

Charles Bally e a Cortesia Linguística


[O texto que reproduzo, neste post, foi apresentado ao III Encontro Internacional de Análise Linguística do Discurso – Universidade do Minho, Braga – e encontra-se publicado no livro Processos Discursivos de Modalização - Actas do III Encontro Internacional de Análise Linguística do Discurso, Braga, 2006, pp. 243-252]


David F. Rodrigues
ESE-IPVC e CLUNL


          
            A cortesia linguística constitui, desde finais dos anos setenta do século passado, um novo domínio de investigação na área da pragmática linguística, em geral, e da análise do discurso, em particular. O seu objecto é constituído pelas formas verbais corteses e descorteses inscritas no sistema duma língua e pelas construções discursivo-textuais que, com idênticos valores, os locutores (falantes e escreventes), realizam nas práticas de comunicação e interacção.
Através das cortesias verbais (e das paraverbais que geralmente as acompanham) os locutores, em situações de interlocução real ou fictícia, isto é, de efectivos interlocutores, ou em situações de alocução real ou fictícia, isto é, de apenas alocutores, procuram ora evitar ou atenuar a realização de actos verbais descorteses, ora formular e construir actos verbais corteses.
O objectivo da cortesia linguística, enquanto domínio de estudo científico, é duplo: (i) identificar aquelas formas, construções e práticas, realizadas tanto em interacções verbais estritas (conversas, diálogos, entrevistas…) como em interacções verbais latas (as restantes práticas não especificamente dialogais) e (ii) descrever e sistematizar os meios e mecanismos linguísticos e discursivo-textuais que realizam, explicam e explicitam tais formas, construções e práticas.
Recorrendo a esses meios, adequados, sempre, a cada situação e contexto de interlocução ou alocução, os interlocutores ou alocutores, porque sempre, uns e outros, em interacção e, por isso, sempre também interactantes, procuram, fundamentalmente, preservar as faces ou imagens de uns e de outros, bem como de terceiros, presentes ou ausentes, em particular quando objecto de discurso. Deste modo se faz com que as diferentes interacções verbais decorram em maior ou menorconvivência e harmonia social.
A cortesia geral é um saber viver. Na sua dimensão verbal, é essencialmente um saber dizer que, por isso, é uma competência discursivo-textual [cf. Rodrigues (2003)].
Robin Lakoff (1973), Geoffrey Leech (1983) e Penelope Brown & Stephen Levinson (1978/1987)[1] são considerados os fundadores da cortesia linguística. De facto, as teorias destes autores, em particular a do último par, com ou sem as correcções, clarificações e desenvolvimentos, ao nível terminológico e conceptual, introduzidos sobretudo por Catherine Kerbrat-Orecchioni (1992 e 1996), constituem os primeiros modelos sistematizados de análise, segundo uma perspectiva fundamentalmente pragmático-linguística. A eles se deve o mérito da caracterização da especificidade dos actos verbais corteses (e, a contrario, dos descorteses), bem como a importância que eles desempenham nos processos da comunicação humana, em geral, e da interacção verbal, em particular.
Outros autores, porém, da filosofia à linguística, os precederam na reflexão e estudo da cortesia verbal, nomeadamente aqueles que chamaram a atenção para o carácter accional e interaccional da linguagem. Cabe destacar, no campo da filosofia da linguagem, os nomes de Paul Grice (1975) e de John Searle (1969 e 1975), e no campo da microssociologia, Erving Goffman (1967, 1971, 1981). No campo da linguística, queremos salientar os estudos de Charles Bally.
As reflexões e descrições de Bally sobre as formas verbais de cortesia constituem o tema desta breve intervenção. Na sua obra, em particular nos volumes Traïté de Stylistique Française (1909) e Le Langage et la Vie (1913)[2], encontram-se abordagens que, em nosso entender, são precursoras da cortesia linguística, entendida como domínio de investigação e estudo.
Comecemos, porém, por abordar, sumariamente, as propostas teóricas fundadoras deste novo ramo da linguística.

Nos teorias de Grice, Searle e Goffman - respectivamente (re)conhecidas pelas designações de lógica conversacional, ilocutória, e teoria da face e territórios do eu - encontram-se os principais fundamentos teóricos das propostas fundadoras da cortesia linguística.
Com efeito, se, por um lado, Lakoff e Leech assentam e desenvolvem as respectivas teorias em princípios e máximas, tal como fizera Grice, em relação à conversa(ção), Brown & Levinson, por seu turno, cruzam a teoria searliana com a teoria goffmaniana.
São bem conhecidas de todos as teorias de Grice e de Searle. Recordemos, todavia, que o primeiro [cf. Grice (19954: 28)] reconhece, além das conversacionais, outras máximas, referindo, entre elas, precisamente, uma de cortesia: Be polite. Searle (cf. 1983: 64), por seu turno, observa que, entre as regras normativas que governam formas de comportamento preexistentes, se encontram as regras de cortesia. Além disso, ao descrever, a taxinomia dos actos ilocutórios, observa que a cortesia constitui a principal motivação do recurso à indirectividade, na formulação dos actos directivos [cf. (1982: 77)].
Lakoff retoma a máxima griceana de cortesia e estabelece, a partir dela, um conjunto de três (sub)máximas ou regras. Em síntese, estas postulam que os interlocutores não devem ser inoportunos, nem impor os seus pontos de vista, mas oferecer alternativas e promover a cordialidade [cf. Lakoff (1998: 268)].
Leech, por seu turno, propõe um modelo descritivo baseado, por um lado, na teoria ilocutória de Searle, e, por outro, na teoria conversacional de Grice. Defende que, num acto de comunicação, não é o griceano princípio de cooperação que desempenha um papel importante, mas também outros, entre os quais destaca o princípio de cortesia. A cortesia é, assim, um dos princípios pragmáticos que, ao nível da retórica interpessoal, os interlocutores observam quando formulam e/ou interpretam, eficazmente, enunciados. Tal princípio consiste, essencialmente, na minimização de «custos» e na maximização de «benefícios» para o interlocutor, através do cumprimento de seis máximas: do tacto, da generosidade, da aprovação, da modéstia, do acordo e da simpatia [cf. Leech (199610: 81-82 e 132)].
A teoria de Brown & Levinson é, de entre as três fundadoras, a mais estudada, aplicada e também, por isso mesmo, a mais criticada. A sua assunção básica é de que todo o adulto tem e sabe que cada um dos outros também tem uma face pública. Sabe, por outro lado, que as faces, a sua e as dos outros, são vulneráveis. Os actos de fala, por isso, são sempre potencialmente actos ameaçadores de face (FTA – face-threatening acts), em primeiro lugar do outro, mas também de si próprio. É necessário, pois, proteger umas e outras, recorrendo, para o efeito, a um conjunto de estratégias de cortesia.
Os autores distinguem, na noção de face, duas dimensões essenciais e complementares - a face negativa e a face positiva - que fazem corresponder, respectivamente, às noções goffmanianas de territórios do eu e face. Os territórios do eu são o corpo e os seus prolongamentos, os bens materiais e espirituais, os espaços privados e o tempo, as crenças e os segredos de cada um. A face corresponde ao que se entende, habitualmente, por narcisismo e/ou auto-estima.[3]
Por considerar haver (e com razões), na teoria de Brown & Levinson, por um lado, uma concepção demasiado pessimista e negativista da vida em sociedade e, por outro, algumas imprecisões e insuficiências, a nível conceptual e terminológico, Kerbrat-Orecchioni (1992: II Parte e 1996: cap. 8 e ss.)[4],
embora adopte e siga de perto o modelo destes autores, introduziu-lhe algumas clarificações e correcções. A linguista francesa retoma a noção de FTA e as noções e categorias descritivas anexas. Observa que, além dos ameaçadores, há também actos valorizadores de face, que designa também em inglês - face flattering act – e respectiva sigla - FFA. Neste sentido, ser verbalmente cortês consiste tanto em atenuar a expressão de FTA’s (cortesia negativa), como em produzir FFA’s (cortesia positiva), consoante os contextos de interacção e suas dinâmicas. Atenuação e produção, cujos processos linguísticos e discursivo-textuais, além de diversos e acumuláveis, constituem categorias abertas. Nãolistas definitivas, nem exaustivas.

Feito este rapidíssimo voo sobre as teorias fundadoras da cortesia linguística, regressemos a Bally (1865-1947) e sobretudo às reflexões e descrições que sobre as formas verbais corteses formulou.
Apesar de primeiro (co)editor, em 1916, do célebre Curso de Linguística Geral de Ferdinand Saussure (1857-1913), de quem foi, aliás, discípulo e a quem sucedeu, em 1913 (ano da morte prematura do «mestre»), na Universidade de Genève, e de, por outro lado, ter publicado importantes estudos na área da linguística, Bally caiu, durante muito tempo, num relativo esquecimento. Recentemente, porém, a sua obra tem vindo a merecer um renovado e crescente interesse da parte de muitos investigadores, provenientes de diferentes áreas científicas. Sylvie Durrer (1998: 12) observa, a propósito, que Bally está a transformar-se numa referência obrigatória em vários domínios da linguística, em particular, no que diz respeito às teorias da enunciação e da pragmática, sendo mesmo considerado um dos seus primeiros fundadores.
Bally não autonomizou a cortesia verbal, como domínio de estudo, nem elaborou uma teoria sobre a matéria. O seu principal objectivo consistia na elaboração de uma estilística linguística, designação que se esforçou por impor, embora sem sucesso, acabando por adoptar a designação, então mais frequente, de enunciação.[5] As formas de cortesia constituíam, para Bally, apenas um dos muitíssimos processos que os falantes de uma língua utilizam para expressar os pensamentos, as emoções e os afectos. Agem, assim, sobre os seus interlocutores, consoante as circunstâncias e as necessidades do momento.

Para o linguista, a estilística não é o estudo da língua literária, nem do génio individual de um escritor. O seu corpus é a língua materna, corrente e em uso, sobretudo oral, numa dada comunidade. É, como escreve, em Le Langage et la Vie (19653: 133):

«L’étude de la langue de tout le monde en tant qu’elle reflète, non les idées pures, mais les émotions, les sentiments, les volontés, les impulsions, bref : la langue de tout le monde comme moyen d’expression et d’action.»

Ou, então, como a define e destaca em Traïté de Stylistique Française (19513: 16):

«La stylistique étudie donc les faits d’expression du langage organisé au point de vue de leur contenu affectif, c’est-à-dire l’expression des faits de la sensibilité par le langage et l’action des faits de langage sur la sensibilité.»

Charles Bally foi, certamente, um dos primeiros linguistas (senão o primeiro) a chamar a atenção para o valor social ou pragmático, na dupla dimensão accional e interaccional, da linguagem verbal, fruto e reflexo que é do viver em sociedade. Nesta ordem de ideias, a linguagem verbal é, para o linguista, uma forma de poder simbólico, uma «arma de combate» que o falante utiliza, nas «lutas verbais» que trava com os outros, mesmo nas interacções afectivas e amorosas.
Este aspecto de que a palavra é condição e resultado do «instinto social do homem» e, por isso, uma tentativa de acção sobre o outro, encontra-se em várias passagens da obra referida do autor.
Dois exemplos, de entre as muitas citações possíveis. Em Traïté (19513: 289), escreve, a dado passo:

«La communication et l’échange des pensées […] est donc une lutte; mais qui dit lutte, dit aussi obstacles à surmonter. Ces obstacles sont considérables et renaissent pour ainsi dire à chaque mot prononcé.»

E, em Le Langage et la Vie (19653: 21), escreve que, se para um observador superficial,  a conversa mais anódina nada apresenta de especial, analisados mais de perto os processos nela utilizados, «la langue apparaîtra comme une arme que chaque interlocuteur manie en vue de l’action, pour imposer sa pensée personnelle».

No conjunto desses processos linguísticos de acção sobre o interlocutor, o nosso linguista inclui aspectos de natureza retórica e argumentativa, novos e inovadores, porque realizados também ao nível da linguagem corrente. Esses aspectos muito recentemente começaram a ser tidos em consideração pelos linguistas e, em particular, pelos que têm, como principal área de estudo e investigação, a análise discursivo-textual e, dentro desta, a cortesia linguística. Escreve o autor, no mesmo estudo (19653: 21):

«La langue de conversation est régie par une rhétorique  instinctive  et   pratique; elle use, à sa manière, des procédés de l’éloquence, ou, pour mieux dire, c’est à elle que l’éloquence a emprunté ses procédés. En effet, pour l’énoncé des moindres choses, il faut que la pensée devienne une action et s’impose par le langage; il faut que celui-ci se fasse tantôt pénétrant, incisif, énergique, volontaire, tantôt vibrant, passionné, tantôt humble et suppliant, souvent même hypocrite.»

A parte final da citação aponta, claramente, para uma outra dimensão da linguagem verbal, intimamente relacionada com a dimensão accional - a interaccional. Aliás, o linguista acrescenta, de imediato, para exemplificar a «infinita» variedade de formas com que se pode formular uma ordem ou um convite, o seguinte:

«Si vous désirez que quelqu’un vienne vers vous, vous ne le dites pas toujours de la même façon; votre expression se modifiera, selon les rapports existant entre vous et la personne interpellée, et surtout selon le degré de résistance ou d’acquiescement que vous prévoyez de sa part».

Quer dizer, o uso da linguagem verbal faz com que o falante tenha em consideração não todas as suas próprias características e propriedades, mas também as do seu interlocutor, porque, argumenta Bally (19513: 289), «dans toute conversation véritable, ce n’est pas une intelligence qui est en lutte avec autre intelligence, c’est un moi tout entier qui veut triompher d’un autre moi». Por isso, o locutor, ao usar a palavra, procura prever a possível recepção que o seu discurso terá no outro e, consequentemente, vai construí-lo em função da imagem que tem de si próprio, da imagem que tem do interlocutor e da imagem que tem da relação entre ambos. O linguista antecipa, assim, em muitos anos, considerações que, na última década do séc. XX, são propostas e defendidas pelo lógico natural Jean-Blaise Grize. Na sua teoria da esquematização, este investigador da Universidade de Neuchâtel elabora uma nova e coerente teoria da comunicação discursivo-textual, verdadeiramente alternativa das teorias tradicionais [cf. Grize (1990: caps. 4 e 5, e 1996: cap. 3)][6]
Regressando a Bally, o linguista observa então, em Traïté (19513: 9) que, quando queremos exprimir uma vontade, uma ordem, um desejo, pensamos «surtout à la personne à qui nous l’exprimons ou à qui nous pensons en l’exprimant». E em Le Langage et la Vie, (19653: 22) - embora idênticos argumentos se encontrem também no Traïté (cf. 19513: 290) – esclarece:

«La présence ou la simple représentation mentale d’autres personnes peut exercer une action coercitive sur notre langage. Ainsi, en parlant avec quelqu’un, ou en parlant de lui, je ne puis m’empêcher de me représenter les relations particulières (familières, correctes, obligées, officielles) qui existent entre cette personne et moi; involontairement je pense, non seulement à l’action qu’elle peut exercer sur moi; je me représente son âge, son sexe, son rang, le milieu social auquel elle appartient; toutes ces  considérations  peuvent  modifier  le  choix  de mes expressions et me faire éviter tout ce qui pourrait détonner, froisser, chagriner. Au besoin le langage se fait réservé, prudent ; il pratique l’atténuation et l’euphémisme, il glisse au lieu d’appuyer.»

Como andamos próximos, tão próximos, neste caso, da importância dos factores ou variantes sociais que Brown & Levinson [cf. (19966: 74-84)] e seus continuadores [cf. Kerbrat-Orecchioni (1992: 259-265)] destacam nas estratégias de evitação dos actos ameaçadores de face e dos processos de preservação das facesface-work», figuração) defendidos por Goffman…
«Par figuration (face-work) – define o sociólogo [Goffman (1974: 15)] – j’entends designer tout ce qu’entreprend une personne pour que ses actions ne fassent perdre la face à personne (y compris elle-même).» E explicita, logo de seguida: «La figuration sert à parer aux “incidents”, c’est-à-dire aux événements dont les implications symboliques sont effectivement un danger pour la face
É evidente que, face a todas as considerações e citações anteriores, Bally teria que se referir, inevitavelmente, à análise das «formas ditas de cortesia» (a expressão é sua), as quais constituem o maior número de processos linguísticos antes referidos. E dá exemplos [cf. Bally (19653: 22)] de modos como atenuar (i) uma ordem (que pode ser também um convite), (ii) uma crítica (que pode ser também uma reprovação), (iii) uma advertência e (iv) uma objecção:

 (i) «Ainsi, au lieu du simple: Entrez! on dira: Veuillez entrer! - Donnez-vous la peine d’entrer! Faites-­moi le plaisir d’entrer!»

(ii) «Au lieu de Vous mentez! l’hypocrisie, la peur, les égards qu’on doit à quelqu’un incitent à dire: Vous exagérez! - Ce n’est pas tout à fait exact, etc.»

(iii) «C’est encore l’hypocrisie sociale qui crée des précautions oratoires telles que: Je n’ai pas besoin de vous recommander la plus grande discrétion.»

(iv) «Pour faire avaler une objection, Vous avez raison, mais... - Je veux bien . - Je ne dis pas ­non. - Je vous l’accorde, mais... plus familièrement : Tout ce que vous ­voudrez, mais...» (Alineação da nossa responsabilidade)

Veja-se agora como o linguista [Bally (19653: 22)] conclui estas reflexões e descrições, fazendo uma espécie de síntese sobre a questão das dimensões accional e interaccional da linguagem verbal, isto é - diríamos nós - da linguagem verbal como competência discursivo-textual:

«Ainsi le contact avec les autres sujets donne au langage un double caractère: tantôt celui qui parle concentre son effort sur l’action qu’il veut produire, et l’esprit de l’interlocuteur est comme une place forte qu’il veut prendre d’assaut; tantôt c’est la représentation d’un autre sujet qui détermine la nature de l’expression; on ne calcule plus les coups à donner, on songe à ceux qu’on pourrait recevoir».

Estamos claramente no domínio da cortesia linguística, a qual, para Bally, não constitui um «fenómeno primário», uma vez que ela impede, até certo ponto, como diz, a livre expressão individual dos falantes. Além disso, como se viu acima, entende frequentemente a cortesia como hipocrisia social e mentira, ou seja, segundo uma perspectiva de ética social. Como outros, aliás, a vêem como uma virtude, patente desde logo no título do volume colectivo organizado por Régine Dhoquois (1992), La Politesse, vertu des apparences. Ora, a nosso ver, as estratégias de cortesia verbal e as suas realizações mais ou menos estratégicas, para um linguista, não devem ser analisadas por esse prisma, mas como processos discursivo-textuais, isto é, também como processos retóricos e argumentativos, de persuasão e convencimento. Neste sentido, as estratégias de cortesia são sobretudo cortesias estratégicas.
Não obstante, Bally (19653: 104) enumera, explicitamente, como categorias linguísticas de expressão de cortesia verbal, as seguintes:

(i) «vocabulaire (exemple : "une personne forte" pour "une personne corpulente"), "une supposition inexacte", pour "une mensongère", etc.» ;

(ii) «phraséologie (A qui ai-je l’honneur de parler?»;

(iii) «titulature symbolique de la hiérarchie sociale (comparez : Colonel ! Mon colonel ! Monsieur le colonel !)».

Além destas, o autor acrescenta outras construções que, segundo afirma, são a manifestação de que «la politesse imprime sa marque sur des parties profondes de la grammaire», referindo, como exemplos:

(iv) «le pluriel de politesse»;

(v) «l’emploi de la troisième personne pour la seconde»;

(vi) «toute une gamme de nuances modales, par exemple l’emploi du futur et du conditionnel dans les interrogations impératives (Vous me direz tout, n’est-ce pas ? Viendrez-vous ? Me passeriez-vous le pain ?.» (Alineação de nossa responsabilidade)

A lista dos processos linguísticos e discursivo-textuais com que, segundo Bally, se pode expressar comportamentos sobretudo corteses está, evidentemente, incompleta. Bally (19513: VI parte, pp. 284-322) refere-se e descreve outros processos, noutras passagens, nomeadamente quando trata dos processos linguísticos de atenuação e de intensificação, das figuras retóricas e das formas de expressão indirecta, bem como a importância do papel do meio ou contexto social e da entoação, na «língua de toda a gente». Ou quando trata do uso da linguagem verbal, sobretudo oral, na expressão dos afectos e emoções, dos sujeitos do discurso e da modalidazação. Que a cortesia verbal é também uma questão de modalização, prova-o Maria Helena Araújo Carreira (1995 e 1997), na sua tese de doutoramento: Modalisation Linguistique en Situation d’Interlocution. Proxémique verbale e modalités en portugais.
Mas o próprio linguista confessa [cf. Bally (19653: 104)] que não podia descrever e analisar, em pormenor, os «fenómenos de reacção recíproca no seio da linguagem», porque, como observa, os  seus  processos  de  expressão, nomeadamente os de cortesia «são delicados e mal conhecidos». Regista, porém, que «la lutte des individus et des classes à l’intérieur de la société revêt, sauf en temps de crise, des formes détournées et pacifiques, et que celles-ci se reflètent dans le langage de la politesse», para acrescentar, de seguida, que a palavra cortesia deve ser tomada no seu sentido mais amplo, que ela é, «au plus haut degré, un mode d’expression réfléchi et artificiel parce qu’il repose en grande partie sur des atténuations et de tabous sociaux.»
O emprego das formas de cortesia exige, por isso, muitas vezes, uma escolha cuidada, que o seu «uso indevido arrasta a sanção do ridículo» [cf. Bally (19653: 104)]. E tudo isto porque, segundo observa, independentemente da cortesia ser sincera ou hipócrita (o linguista vê-a, muitas vezes, mais como hipocrisia social) «elle contraint l’individu à un contrôle constant sur lui-­même, à une observation attentive de ceux avec qui il a affaire; l’énoncé de sa pensée s’en ressent, et la politesse a sa langue spéciale.»
Língua especial, acrescente-se, que vai muito para além das fórmulas catalogadas nos manuais de etiqueta e boas maneiras, velhos e novos, por mais socialmente correctos que no-los queiram apresentar.

Procurámos apresentar uma visão geral, se bem que rápida, dado o tempo disponível, dos contributos que Chales Bally deu para o estudo linguístico da cortesia verbal. Ficaram, evidentemente, muitos aspectos por abordar. Seria importante, por exemplo, analisar-se, comparativamente, as reflexões e descrições do linguista sobre esta matéria, com as propostas dos fundadores da cortesia linguística. Verificar-se-ia, certamente, que muito do que Lakoff, Leech e Brown & Levinson disseram, nos finais do século XX, sobre esta temática, se encontra , ainda que de forma dispersa, incompleta e nem sempre conceptualmente coerente, na obra do discípulo de Saussure, publicada nos primeiros anos do mesmo século.
Bally soube, efectivamente, entrever, com muita antecedência, a extensão linguística das cortesias verbais, segundo uma perspectiva linguística e pragmática, ou seja, como preferimos dizer, segundo uma perspectiva discursivo-textual. Eis por que o consideramos um percursor da cortesia linguística.


[1] Brown & Levinson publicaram, em 1978, uma primeira versão do seu ensaio, que pode ser considerada a primeira edição de Politeness, Some universals in language use, publicado, depois, em livro (1987), com uma nova e longa introdução, algumas correcções e nova bibliografia.
[2] Le Langage et la Vie foi publicado, pela primeira vez, em 1913. Outras edições se lhe seguiram, com novas e profundas alterações. Em 1925, com o mesmo título, o autor reuniu àquele outros estudos, considerando, por isso, primeira esta edição. Bally continuou a introduzir novas alterações nas edições posteriores, nomeadamente na segunda, publicada em 1935.
[3] Para uma síntese mais desenvolvida da teoria de Brown & Levinson, cf. Rodrigues (2003: 121-130).
[4] Kerbrat-Orecchioni resume a sua proposta em vários e muitos outros estudos. É nestes, porém, que se encontra a sua forma mais desenvolvida (1992) ou o seu resumo essencial (1996).
[5] Observa, a propósito, Durrer (1998: 103): «Le nom de Charles Bally est unanimement associé à celui de stylistique linguistique. Celui-ci a essayé durant de nombreuses années d’imposer cette terminologie en dépit de son ambiguïté et des réserves qu’elle suscitait dans la communauté scientifique. Bally n’a cédée aux arguments de ses collègues que dans son dernier ouvrage de linguistique, Linguistique générale et langue française. Il remplace alors stylistique par énonciation, après avoir été tenté par d’autres variantes. En tête de celles-ci, on peut mentionner affectivité, expressivité, sensibilité, notions entre lesquelles il n’a cessé de balancer.» A obra de Bally referida nesta nota foi publicada, pela primeira vez, em 1932. Seguiram-se outras edições, corrigidas e aumentadas.
[6] Para uma apresentação da teoria grizeana, cf. Rodrigues (2003: 65-85).


Referências bibliográficas

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