sábado, 4 de fevereiro de 2012

DIZ-ME COMO FALAS / DIR-TE-EI COMO ÉS

Comunicação, discurso e cortesia (II)

[O texto que, neste post reproduzo é a parte final de uma versão reduzida e escrita de uma palestra que proferi na Escola Superior de Ciências Empresariais de Valença, do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, no dia 12 de Novembro de 2004. Deveria ter sido publicado, depois, no n.º 3 da revista IPVC-Academia. Tal número, porém, nunca chegou a ser publicado. Entretanto, a revista terminou.]

David F. Rodrigues
[ESE-IPVC]


                Ao Professor A. Lima de Carvalho



02. Da cortesia linguística



02.1. Teoria(s)

A cortesia linguística, enquanto domínio científico, tem pouco mais de 30 anos. O seu início, no quadro da Linguística Pragmática, data dos finais dos anos 70. Conheceu, porém, nas décadas seguintes, desenvolvimentos verdadeiramente consideráveis. A linguista francesa Catherine Kerbrat-Orecchioni chega mesmo a afirmar que ela «está na moda» [Kerbrat-Orecchioni, 1992: 161].
Não têm sido, porém, os linguistas a redescobrir e a interessar-se pelas cortesias e descortesias verbais. Outros autores, de outras áreas científicas, têm vindo a interessar-se também pela problemática, em particular, a Literatura, a Sociologia, a Filosofia e a Retórica. Mesmo a nível social, há cada vez mais gente interessada em saber e praticar as regras do saber (con)viver, como o provam as edições e reedições de manuais de etiqueta e boas maneiras.
O modelo teórico de descrição e análise que tenho seguido, aplicado e adaptado ao estudo das cortesias e descortesias verbais em Português de Portugal, é o «sistema de cortesia» proposto por Kerbrat-Orecchioni. De entre a vasta obra que a linguista tem publicado sobre a matéria, destaco os tomos II e III de As Interacções Verbais, publicados, respectivamente, em 1992 e 1994, e o livro A Conversa, de 1996, onde se pode encontrar o essencial sobre a matéria, em particular, nos capítulos 8 a 10.
Tal proposta é um modelo explicitamente construído sobre as teorias fundadoras de Lakoff [1973], Leech [1983] e Brown & Levinson [1978 e 1987]. Estes autores fundamentam-se, por seu turno, na teoria ilocutória dos actos de fala de Austin [1962] e Searle [1969 e 1979], da lógica conversacional (princípio de cooperação e máximas conversacionais) de Grice [1975], e nas teorias da «face» e «territórios do eu», de Goffman [1959, 1967, 1971 e 1981]. Uma perspectiva, portanto, simultaneamente ecléctica e interdisciplinar. Destas últimas teorias não cabe, aqui e agora, uma exposição detalhada. Limitar-me-ei, por isso, à teoria de Kerbrat-Orecchioni [cf. 1992, 1994, 1996 e 2001].
Esta linguista baseia, essencialmente, a elaboração do seu «sistema de cortesia», na teoria de Brown & Levinson. Nela colhe a principal terminologia (cortesia negativa e cortesia positiva; face negativa e face positiva) e sobretudo o conceito de acto ameaçador de face, que mantém na designação inglesa e respectiva sigla: Face Threatening Act (FTA). Além disso, aperfeiçoa e clarifica aquelas noções, o que a leva a introduzir, no modelo, um outro tipo de actos verbais, de natureza optimista (ao contrário dos ameaçadores, essencialmente pessimistas), com a designação de actos valorizadores de face. Por coerência terminológica, a autora nomeia estes actos também em inglês e respectiva sigla: Face Flattering Act (FFA). Ao mesmo tempo, precisa aquelas definições, algo confusas, de facto, em Brown & Levinson.
A cortesia negativa é entendida, então, como abstencionista: a melhor forma de se ser verbalmente cortês é abster-se de realizar actos capazes de ferir as faces do nosso interlocutor, ou seja, de realizar um FTA. Perante, contudo, a inevitabilidade da sua realização, ou substitui-se por outro menos lesivo, e/ou acompanha-se de compensações. Está-se, num caso como noutro, no âmbito das estratégias discursivo-textuais atenuadoras.
Um FTA pode ferir a face negativa dos interlocutores, que corresponde, grosso modo, ao que Goffman chama «territórios do eu» - o corpo, o espaço, o tempo, os bens materiais e intelectuais, os segredos… Pode ferir, também, a face positiva (simplesmente «face», em Goffman). Esta corresponde ao conjunto das representações valorizadoras que os interlocutores possuem e constroem de si próprios e tentam mostrar e impor aos outros. É a faceta narcisista ou de auto-estima que todos nós temos e queremos ver respeitada. A substituição de um FTA por outro pode ser acompanhada, como intensificação, por outros actos discursivo-textuais, que funcionam como compensações. Por exemplo, fornecendo explicações e justificações, e utilizando fórmulas de cortesia mais ou menos reforçadas. Nesta ordem de ideias, a cortesia negativa consiste na realização de actos discursivo-textuais que atenuam a realização inevitável de actos ameaçadores e/ou descorteses.
A cortesia positiva, por seu turno, é de natureza produtiva. O locutor formula actos discursivo-textuais valorizadores, em regra e por princípio, das faces negativa e/ou positiva do interlocutor. Estes actos também podem ser (e são-no frequentemente) reforçados ou intensificados. O agradecimento, por exemplo, com que valorizamos a face positiva do alocutário, pode ser realizado apenas pela fórmula «Obrigado!», mas também, de forma intensificada, por «Muito, obrigado!», ou «Obrigadíssimo!», ou «Muito, muito obrigado!», ou «Muitíssimo obrigado!», ou «Imensamente grato/agradecido!» Sem excessos, contudo, não vá o pobre desconfiar da esmola. Altas cortesias, quando inadequadas ao contexto, passam, geralmente, as descortesias.
                Conjugando os pares cortesia negativa vs. cortesia positiva, face negativa vs. face positiva, com o par de princípios que definem as regras de cortesia orientadas para as faces do alocutário (princípios A-orientados) vs. princípios que definem as regras de cortesia orientadas para as faces do locutor (princípios L-orientados), tem-se que, numa situação diádica interlocutiva, encontram-se em presença, pelo menos, quatro faces, conforme esquematicamente se representa na Fig. 1, faces que podem ser ameaçadas e/ou, inversamente, valorizadas.



Procuro representar, neste esquema, em síntese, a orientação dos actos corteses (FFA) e descorteses (FTA), e as faces dos interlocutores (efectivos ou não) que, directa e/ou indirectamente, são atingidas com a sua realização. A realização de um acto ameaçador, descortês (FTA), ou um acto valorizador, cortês (FFA), atingem, directamente (setas curvas de cauda contínua), uma ou ambas as faces do alocutário ou do locutor, mas acaba sempre, também, por atingir, ainda que indirectamente (setas curvas de cauda tracejada) as faces de um e outro. É o chamado efeito boomerang. Também por isso, direi, recordando, diz-me como falas, dir-te-ei como és.

                02.2. Modelo: descrição e análises

Kerbrat-Orecchioni [1992: 184] sintetiza o «sistema de cortesia», como, em resumo, mostro na FIG. 2 e que, de forma breve, a seguir descreverei.



Os princípios A-orientados vêm à cabeça. São eles que realizam a cortesia em sentido estrito. Por abstenção ou compensação (no caso da cortesia negativa, I.1) e por produção (no caso da cortesia positiva, I.2), tais princípios são sempre favoráveis a uma ou a ambas as faces do alocutário. Manda o princípio I.1 que o locutor evite ou, tal não sendo possível, atenue o acto lesivo das faces negativa e/ou positiva do alocutário. São muitos os actos ameaçadores que podem ocorrer numa interacção verbal. De evitar são, em regra, os insultos e os chamados actos directivos (ordens, pedidos, conselhos…) directamente formulados, uns e outros descorteses, por natureza. Devem-se evitar, também, os comentários e as observações deselegantes, as críticas fortes, as refutações radicais, as admoestações violentas... Se, porém, não puderem ser evitados, minimiza-se a sua gravidade, através de processos atenuadores, segundo as regras sócio-culturais da cortesia e os mecanismos linguísticos e discursivo-textuais da língua.
Um exemplo, em questão. Porque é que, no bar, pedimos ao empregado «Queria um café», de preferência acompanhado de faz favor, para mais doce ficar o pedido?
Pondo, agora, a questão em termos linguísticos e no âmbito da cortesia linguística: porque utilizamos o imperfeito, tempo que situa o pedido no passado, quando ele acontece no presente e se quer  ver perlocutoriamente realizado num futuro imediato?
Porque, naquele contexto, o pedido é um acto directivo, muito próximo da ordem, aliás, ao impor a realização de um serviço. Ameaça-se, assim, a face negativa, o território do empregado, mesmo sabendo-se que ele tem a obrigação de cumprir a tarefa. Recorre-se ao imperfeito, porque é um tempo/modo que atenua a descortesia do pedido, por um processo de desactualização temporal. O pedido (ou a ordem) é remetido para um tempo que não existe, nem pode voltar a existir. É como tornar o pedido (ou a ordem) fictício, irreal. O imperfeito é, em português, como noutras línguas, o tempo da cortesia, ou da simpatia, como lhe chama Rodrigues Lapa [19758: 205].
O princípio I.2 é de cortesia positiva. Propõe a valorização das faces do alocutário. Através de actos valorizadores, o locutor deve, por exemplo, disponibilizar-se a ajudar o alocutário, oferecer-lhe “presentes verbais”, elogiar-lhe a família, os bens pessoais e materiais, dirigir-lhe cumprimentos e felicitações. As formas de tratamento corteses, em geral, e, dentro delas, as honoríficas e deferenciais, em particular, são realizações deste princípio.

Na hierarquia dos princípios corteses, vêm, em segundo lugar, os princípios orientados para o locutor (L-orientados). Distinguem-se, desta vez, princípios favoráveis ao locutor (II.A), de princípios desfavoráveis ao locutor (II.B). No que toca a II.A, há apenas um princípio, de cortesia negativa (II.A.1). O locutor deve salvaguardar, na medida do possível, a sua face negativa (os territórios pessoais) de, por exemplo, intrusos e inoportunos. Além disso, não deve fazer falsas promessas, nem mentir. Por outro lado, não deve permitir que a sua face negativa seja atacada e ofendida. A acontecerem tais FTA’s, o locutor deve responder, defendendo-se. Quem não se sente…
Não faltam casos, em que pessoas reclamam reparos da sua honra e bom-nome, isto é, das suas faces (negativa e/ou positiva) atacadas e ofendidas. Por exemplo, Clara Ferreira Alves, em carta dirigida ao director do Expresso, publicada no dia 30 de Outubro de 2004. A jornalista sentiu-se «caluniada», na sua «pessoa e reputação», com notícia e opiniões publicadas naquele semanário, no dia 23 de Outubro. O jornal informara que ela iria ser designada directora do Diário de Notícias e insinuara que tal designação resultaria de ela ser mais uma «santanete», engrossando, assim, a lista dos jornalistas «comissários políticos» do governo de Santana Lopes. Ferreira Alves desmente a notícia e refuta as insinuações, nomeadamente, as expressas pelo director adjunto, José António Lima, vistas como «linchamento» e por utilizar uma «linguagem insultuosa e deselegante».
A jornalista reage, defendendo a sua face positiva: «Ele insulta-me e, insultando-me, insulta os meus leitoresMais: «Insulta também o júri do Prémio Pessoa, de que faço partemuitos anos a convite de Francisco Pinto Balsemão». Repare-se na mudança de referência e tratamento do director adjunto: depois de se lhe ter dirigido pelo cargo e pelo nome próprio, passa a referi-lo e a tratá-lo por ele, um pronome pessoal de terceira pessoa, assim manifestando afastamento e ruptura de relações. Note-se, por outro lado, como Ferreira Alves acentua a gravidade da ofensa, pelo alargamento dos alvos prestigiados que diz terem sido também atingidos. Esta convocação, como testemunha abonatória de sua pessoa e reputação (da sua face positiva), do proprietário e fundador do jornal, conhecida figura da política e da indústria mediática portuguesa, não é inocente. A carta apontava, até , para um corte de relações com o jornal e logicamente à sua demissão de colaboradora. Não o fez, porém, em nome do «respeito e longa amizade» que confessa manter com Pinto Balsemão. E termina por revelar, reforçando a auto-defesa e a auto-estima das suas faces (de refiguração, chamar-lhe-ia Goffman), que continua, todavia, como colunista do Expresso, porque foi o próprio que lhe pediu para ficar.
A carta de Ferreira Alves mereceria ser analisada sob outros aspectos. Ficará para outra oportunidade. Deixem-me, todavia, citar mais esta passagem. Nela encontramos um comentário que, além do mais, reflecte e confirma, em parte, o título desta palestra: «Certas notícias e opiniões dizem mais sobre quem as escreve e a sua honra […], do que sobre as vítimas desses escritos, que é o que eu tenho sido, em silêncio, estes dias todos».
Pois é, diz-me como falas, dir-te-ei como és. Mas não é em certos discursos-textos jornalísticos que isso acontece. Em toda e qualquer prática discursivo-textual, o seu autor expõe-se e dá-se a ver, ainda que de forma mais visível/legível nuns que noutros. A carta da jornalista diz, por isso, ainda mais sobre a sua personalidade, além do explicitamente dito. É em casos como estes que a censura aos auto-elogios fica suspensa. Com efeito, a cortesia positiva não propõe qualquer princípio favorável ao locutor. Nas sociedades ocidentais, não é razoável nem socialmente admissível que, entre os princípios corteses do saber-viver, haja uma regra como «Faz o teu próprio elogio». A não ser em casos especiais (como o de Ferreira Alves), os auto-elogios são proscritos, severamente julgados como deselegantes, porque ofensivos das faces dos outros, nossos interlocutores efectivos ou não. Ou seja, a protecção gratuita da própria face positiva não aconselha a sua valorização ostensiva. Assim manda a lei da modéstia.
É a preocupação com a construção e protecção das faces, de figuração – de face work, segundo Goffman - que leva algumas figuras, mais ou menos públicas, a criarem gabinetes de imagem. A seguinte passagem, retirada de uma crónica de José Júdice (publicada no 24 Horas, em 10 de Março de 2000, sobre o então presidente da Câmara Municipal de Cascais), apesar de altamente crítica e irónica, é um exemplo, ao mesmo tempo de figuração (o facto) e de desfiguração (o comentário):

«Ninguém poderá […] levar a mal que se questione por que razão o Dr. Judas […] precisa de quatro assessores que custam mil contos por mês para lhe tratarem da imagem. A explicação mais plausível […] é que serão todos muito ciosos das suas funções profissionais. O “assessor de imagem” ajeita-lhe a gravata e transporta a fita métrica para conferir se a barba é mesmo de três dias, a fotógrafa fotografa, e os dois assessores para a “comunicação social” distribuem as fotos pelo público

Ao contrário dos auto-elogios, encontram-se, com frequência, no sistema de cortesia, regras que jogam, sobretudo, contra as faces do locutor. Encontram-se nos princípios II.B. O princípio II.B.1 propõe que, a ter de se fazer o nosso próprio elogio, se recorra, por exemplo, a processos de indirecção discursiva ou a figuras retóricas, como o litotes e a metáfora, ou a outros processos de substituição ou minimização auto-referencial. Se, por exemplo, um aluno, perante um 18 obtido à disciplina de Linguística, afirma «Não tirei má nota, não senhor!», o que ele está a fazer é a ser cortês, segundo este princípio, recorrendo à figura de litotes, que consiste em sugerir uma ideia pela negação do seu contrário.
Mas se a auto-glorificação, no quadro das relações de cortesia, é, em princípio, socialmente proscrita, a auto-degradação é, em princípio, socialmente recomendada. Pode até dizer-se que a hetero-cortesia exige a auto-descortesia. É o que recomenda o princípio II.B.2, de índole aparentemente masoquista. Por modéstia, tendo em vista o bom relacionamento, degradamos os nossos «territórios», ou lesamos, sinceramente ou não, a nossa face positiva. Seja como estratégia de cortesia, seja como cortesia estratégica. Salta-Pocinhas, a protagonista do Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro [1961: 28], recorria, com frequência, a estratégias deste tipo, geralmente de auto-degradação progressiva, para conseguir seus desígnios, como no exemplo seguinte, que passo a contextualizar.
Demasiado faminta, a raposeta fora informada pelo irmão de que o teixugo, nobremente tratado por D. Salamurdo, havia pilhado pata e era esmoler. Morava ele num castelo,  naturalmente condizente com a alta função que desempenhava entre os bichos da serra - ser informador do seu vizo-rei, o lobo D. Brutamontes. Ela, por seu turno, vivia onde e como podia. Pertencia à ralé. E foi à procura do teixugo. Chegada ao «solar», «chamou à porta»:

– Ó da casa! Ó da casa!
Esperou, tornou a esperar e ninguém lhe respondeu…
– Ó da casa!... Sou eu, a comadrinha raposa, meu rico senhor D. Salamurdo! Sou eu!
O mesmo silêncio […].
– Ando negra de fome... Por alma das suas obrigações, alguma coisinha!
 Não buliu, porém, vivalma naquele castelo de alta fidalguia… Tornou ela a carpir-se:
– Ouvi dizer que Vossa Senhoria pilhou pata... Sou a Salta-Pocinhas, sua amiga leal, verdadeira!

Fixando-nos apenas nas formas nominais de tratamento, verifica-se, como sintetizo e esquematizo no quadro seguinte, que a raposa começa por ocupar lugar social relativamente alto e distanciado, ao dirigir-se ao teixugo. A raposeta não é, porém, bem sucedida com tais chamamentos. Degrada, por isso, a sua face positiva, procurando assim aproximar-se do alocutário. Mas nem assim o consegue. Auto-degrada, então, ainda mais a sua face positiva, num último esforço estratégico. (Negritos e setas curvas contínuas). Ao mesmo tempo, vai dirigindo tratamentos progressivamente honorificantes da face positiva do teixugo. (Itálicos e setas curvas tracejadas.)
Dá-se, assim, uma total inversão de lugares (a nível taxémico, isto é, das relações de poder), depois de ter passado, num primeiro movimento discursivo-textual de aproximação (a nível proxémico, isto é, das relações horizontais), por uma situação de relativo equilíbrio. Mas depois, continuando o movimento, distancia-se do alocutário, por um processo de auto-humilhação. Ao nível do eixo de cortesia, a raposa, ao degradar-se, é descendentemente mais descortês para consigo própria e, ao honorificar o teixugo, é ascendentemente mais cortês para com ele.
Eis como a célebre Salta-Pocinhas que, além de raposeta pintalegreta, era senhora de muito treta (forma irónica e lúdica de dizer que a matreira era também dotada de grande habilidade retórica), transformou estratégias de cortesia em cortesias estratégicas, por elas ficando igualmente conhecida e nomeada. Pois é: diz-me como falas, dir-te-ei como és.



03. Para concluir

É tempo de terminar. Faço-o, retomando o fio condutor que ao longo desta exposição procurei seguir. A cortesia verbal deixou de ser apenas uma questão de etiqueta, a cumprir apenas em contextos formais, e com interesse apenas para chefes de cerimónia ou protocolo. Está presente em todas as práticas discursivo-textuais, incluindo as informais. É hoje, por isso, de novo reconhecida, mesmo ou sobretudo pela sua ausência, nas sociedades contemporâneas. É, por outro lado e também por isso, tema pertinente no âmbito das ciências da linguagem, em geral, e da pragmática linguística e análise dicursivo-textual, em particular. A cortesia linguística é, contudo, um domínio interdisciplinar, onde se cruzam mecanismos linguísticos e discursivo-textuais que os interlocutores (efectivos ou não) utilizam em contextos de comunicação face-a-face ou a distância, em directo ou em diferido. Procura-se com eles estabelecer boas, indiferentes ou más relações, preservando ou destruindo, mutuamente, em maior ou menor grau, as representações, as imagens ou faces que cada um tem, constrói e dá a ver de si próprio e do outro, interlocutor(es) ou terceiro(s).
Sempre que falamos e escrevemos, activamos um conjunto aberto de processos linguísticos e práticas discursivo-textuais, segundo as diferentes situações e objectivos de vida e con-vivência, que sempre são de comunicação, de interacção e, consequentemente, de cortesia ou descortesia. Processos e práticas ora simples, ora complexas, como simples e complexas são, ou queremos que sejam, as relações humanas.


[Nota:
O leitor encontrou, ao longo deste texto, repetições, por um lado, da apresentação do modelo teórico adotado e, por outro, descrição de uma ou outra prática discursivo-textual já analisada em textos anteriores. Isto fica-se a dever ao facto de continuar a reproduzir, neste blogue, estudos sobre (des)cortesias verbais, inéditos ou não, por mim elaborados há já alguns anos. Além disso, tais repetições ajudarão na leitura deste post e do anterior, bem a consulta dos textos já aqui publicados.]

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