CORTESIAS E DESCORTESIAS DUMA SENHORA DE MUITA TRETA (II)
[O texto que, com ligeiras alterações, continuo a reproduzir neste post encontra-se publicado em Actas do XV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, 2000, pp. 257-286, e em Cadernos Aquilinianos, n.º 11, 2000, pp. 51-80]
Kerbrat-Orecchioni, na sequência do que fazem Brown & Levinson, descreve também os processos linguísticos que, a nível de fórmulas como de formas conversacionais, o locutor utiliza, em relação ao seu interlocutor e a si próprio, a fim de que as interacções verbais decorram em relativo equilíbrio e harmonia. Há, pois, uma competência de cortesia, a incluir na macro-competência comunicativa[27], que se manifesta através de procedimentos discursivos, conversacionais e textuais, que vão da prioridade e toma de palavra nos turnos de fala[28], à organização das trocas verbais e sucessão das intervenções, do tipo de actos de fala aos marcadores discursivos[29]. E tudo isto respeitando ou cumprindo os princípios e regras de cortesia, adequados ao contexto da interacção, segundo as normas culturalmente reconhecidas e praticadas por uma dada comunidade.
Aos marcadores discursivos e conversacionais que manifestam as distâncias horizontal (ou de relação proxémica[30]) e vertical (ou de relação taxémica[31]), entre os interlocutores, chama Kerbrat-Orecchioni, respectivamente, relacionemas horizontais e relacionemas verticais (ou simplesmente taxemas, que subdivide, por sua vez, em taxemas de posição alta e de posição baixa)[32]. Além disso, tais relacionemas podem ser classificados ainda em indicadores ou construtores, conforme se limitam a manifestar, respectivamente, um tipo de relação já existente, ou uma relação construída no início ou durante a interacção.
As formas e fórmulas de tratamento, corteses e descorteses, são, por isso, relacionemas que, consoante o tipo de relações interpessoais que estabelecem, são horizontais ou verticais. Apesar da distinção, convém referir que, frequentemente, uma mesma forma ou fórmula de tratamento funciona como relacionema horizontal e como taxema. A complexidade e a dinâmica duma interacção verbal levam a que os interlocutores, conforme o uso que fazem dos tratamentos, ora se aproximem, ora se afastem, ora confundam posições, ora as invertam, ora as recuperem, ora as negoceiem, construindo e gerindo relações interpessoais de simetria e/ou assimetria que podem ir da familiaridade e intimidade, ao afastamento e ruptura completa[33]. E assim, para além das funções fáticas, deíticas e relacionais, os tratamentos afectam e condicionam, por um lado, a organização discursiva de cada um dos interlocutores e do texto conversacional, e, por outro, a sua dimensão configuracional. A este nível, os tratamentos, corteses e descorteses, podem ser vistos como procedimentos retórico-argumentativos[34] que visam a adesão e o convencimento do interlocutor, pela sedução ou confronto agressivo. Como muitas vezes faz a nossa senhora de muita treta. Por exemplo, quando a Salta-Pocinhas procura e encontra o teixugo D. Salamurdo[35].
Trata-se de uma interacção constituída por duas sequências dialogais[36]. A primeira é truncada: aos sucessivos turnos de fala da raposa, o teixugo nunca responde, por se encontrar mergulhado em pesado sono, situação que a raposa desconhecia. Ela interpreta os silêncios do teixugo como respostas negativas às suas intervenções. A segunda sequência é de conflito e de ruptura. O teixugo, ofendido pela invasão e sobretudo pela insuportável falta de higiene da Salta-Pocinhas, nega-lhe a esmola. Ela, sentida e ofendida, retoma a violência dos ofensas[37]. A conversa degenera em insultos verbais mútuos e termina, indo cada um para seu lado. D. Salamurdo a queixar-se do atrevimento da Salta-Pocinhas ao vizo-rei, o lobo D. Brutamontes, de quem era leal servidor. Ela invadindo, logo que se sentiu segura, os aposentos do teixugo, onde, vingativa, lhe causou grandes danos.
Diz-nos o co(n)texto desta interacção que, informada pelo irmão Pé-Leve de que o teixugo havia pilhado pata e era esmoler, a faminta raposa não descansou enquanto não descobriu o castelo onde morava D. Salamurdo. Tem cada uma destas personagens conhecimentos e, consequentemente, representações[38] mútuas diferentes. A raposeta sabe, pelas conversas que foi tendo ao longo da viagem, que o teixugo possui mantimentos, mora num castelo e ocupa um lugar superior, na hierarquia dos bichos que povoam aquelas selvas e penedias. O teixugo, por sua vez, vê na Salta-Pocinhas apenas uma raposa com as características próprias da espécie.
Estes dados co(n)textuais prefiguram, entre as personagens, uma relação distanciada, proxémica e taxemicamente. Como o desenho seguinte pretende mostrar:
D. Salamurdo e Salta-Pocinhas situam-se, simultaneamente, em posições opostas e afastadas, instituindo um tipo de relações de cortesia que o diassistema cultural português define como sendo de respeito do inferior para com o superior.
Foi esta a relação que a senhora de muita treta começou por assumir?
A visita da raposa tem por único objectivo conseguir que o teixugo lhe dê alimento. Para o concretizar (excluído o furto), teria ela de, em primeiro lugar, estabelecer contacto com D. Salamurdo e, depois, formular o pedido. Ora, contacto e pedido são, embora em graus diferentes, actos directivos que colocam o locutor numa posição alta e afastada relativamente ao alocutário, i. é, são FTAs. Assim sendo, não os podendo evitar, deveria a raposeta, para ser cortês, ter atenuado a sua alocução.
E como procedeu ela?
A Salta-Pocinhas, como o olfacto lhe certificasse que estava diante do solar do teixugo, chamou à porta[39]:
[R1] – [1]Ó da casa! Ó da casa! [40]
Em [R1] temos a reduplicação do tratamento nominal apelativo Ó DA CASA! É, na sua construção elíptica e metonímica, uma fórmula informal de chamamento característica de ambientes rurais. Com ela, o locutor anuncia a sua presença e intenta dar início a uma interacção verbal que, realizada com sucesso a sequência fática de abertura, evoluirá para o corpo ou sequência transaccional. Em princípio, porém, tanto o seu enunciador como o seu destinatário são, pessoal e mutuamente, estranhos e anónimos.
Trata-se, por isso, de um acto verbal que ameaça directamente a face negativa (território) do alocutário e, indirectamente, mas com sentido positivo, a face positiva do locutor, uma vez que tem ou pretende ter poder sobre o outro, para o chamar. Com o apelativo Ó DA CASA! a raposa constrói e estabelece, por isso, uma relação de distanciamento simultaneamente proxémica e taxémica. Como a figura seguinte pretende ilustrar:
A Salta-Pocinhas, com [R1], inverte radicalmente as posições de distanciamento que os dados co(n)textuais, anteriores ao início da interacção, haviam prefigurado.
A realização deste FTA de contacto deveria ter sido, por isso, atenuada. Desse modo, a Salta-Pocinhas suavizaria os ataques à face de D. Salamurdo e, correlativamente, protegeria a sua própria face[41]. Mediatamente, ao nível do conteúdo proposicional da fórmula de tratamento utilizada[42]. Imediatamente, pedindo desculpa pela invasão do território e justificando o seu acto. A Salta-Pocinhas, ao longo desta sequência, não chega a formular, explicitamente, um acto reparador de desculpa, embora venha a formular algumas justificações. Todavia, estas, como as formas de tratamento corteses utilizadas, podem ser interpretadas como realizações implícitas de desculpa[43].
Mas será que, de acordo com os princípios de preservação e figuração das faces, não se encontra, na realização deste FTA, nenhum aspecto atenuante?
Numa interacção diádica, em que estão em presença quatro faces, um FTA não fere todas elas de igual modo, nem com igual gravidade. Além disso, ao ataque a uma das faces do destinatário corresponde, assimetricamente, em princípio, uma valorização da face oposta do enunciador.
Acontece que, ao nível da semântica deste acto, quem chama Ó DA CASA! reconhece, indirecta mas positivamente, que se dirige a alguém que possui ou goza de habitação, identificando-o e confundindo-o mesmo com essa habitação, o que equivale a uma manifestação de respeito pela face positiva do destinatário. Mas, em contrapartida para quem chama, este acto é lesivo, de forma indirecta mas negativamente, da própria face negativa, pois reconhece que está junto de propriedade alheia, além de que, pragmaticamente, se chama é porque deseja alguma coisa[44].
A análise da fórmula de tratamento Ó DA CASA!, de ocorrência reiterada no discurso, leva a concluir que a senhora de muita treta não seguiu, a princípio, as melhores estratégias da cortesia. A considerar-se cortês, tal fórmula encontrar-se-á no limiar da cortesia[45]. Basta comparar Ó DA CASA! com as realizações não elípticas de Ó gente da casa!, Ó dono da casa!, Ó patrão da casa! e sobretudo Ó senhor da casa!, claramente mais cortês. Além disso, a Salta-Pocinhas poderia ter utilizado formas e fórmulas de cortesia mais elevada, inclusive honoríficas e deferenciais, como, aliás, acabou por fazer, momentos depois.
[Continua]
David F. Rodrigues
[27] «To function as members of a culture, speakers must have a high degree of communicative competence. They must know how to speak appropriately in given situations: what degree of respect is appropriate, what markers of politeness are required, what rules governing turn-taking are in force, and much more.» [CHIMOMBO & ROSEBERRY, 1998: 6]
[28] «A un premier niveau d’analyse, que l’on peut dire “formel”, toute interaction verbale se présente comme une succession de “tours de parole” - ce terme désignant d’abord le mécanisme d’alternance des prises de parole, puis par métonymie, la contribution d’un locuteur déterminé à un moment déterminé du déroulement de l’interaction (production continue délimitée par deux changements de tour, qui peut du reste avoir une longueur extrêmement variable, allant du simple morphème à l’ample “tirade”)» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 159].
[29] Para uma exposição breve e geral da organização estrutural das interacções verbais, cfr. KERBRAT-OREC-CHIONI, 1996: cap. 6.
[30] Criado por Hall, o termo proxémia designa «o conjunto das observações e teorias referentes ao uso que o homem faz do espaço enquanto produto cultural específico.» [HALL, 1986:11] Contrapondo proxémia a cinésia, o antropólogo americano esclarece que a proxémia «traite de l’architecture, de l’ameublement et de l’utilisation de l’espace... La proxémique cherche à déterminer comment nous établissons les distances» [HALL, 1981: 196, cit. por CARREIRA; 1995: 9] Tomo, aqui, proxémia e proxémico(a) para referir, exclusivamente, distâncias ou relações horizontais.
[31] «Du grec taxis= “place” (dans une structure de préférence hiérarchique)» (KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 75, nota 1]. A autora adverte para o inconveniente deste neologismo poder ser confundido com o termo que, nos seus modelos linguísticos, utilizam Hjelmslev, Bloomfield, Pottier e Rastier. Tomo, aqui, taxémia e taxémico(a) para referir, exclusivamente, distâncias ou relações verticais.
[32] Cfr. KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 42 e 46-47.
[33] Sobre a complexidade dos tratamentos e dos movimentos distanciadores, verticais e horizontais, simétricos e assimétricos, que os interlocutores efectivam com o uso dos tratamentos, cfr. CARREIRA, 1995: cap. 2.
[34] «D’une façon générale, la rhétorique va naître de la prise en compte de la distance entre les locuteurs, qui va directement se négocier ou s’affirmer, et l’on aura la valorisation du locuteur (arguments d’autorité), sa dévalorisation éventuelle pour mieux faire passer une thèse propre, ou symétriquement, la valorisation ou l’attaque directe de l’interlocuteur.» [MEYER, 1993: 119]. Cfr. também LARGUECHE, 1983: 7.
[35] Cfr. RIBEIRO, id.: 28-32.
[36] Sequência entendida como «estrutura», isto é, por um lado, «un reseau relationnel hiérarchique», ou seja, «grandeur décomposable en parties reliées entre elles et reliées au tout qu'elles constituent», e, por outro, «une entité relativement autonome, dotée d'une organisation interne qui lui est propre et donc en relation de dépendance / indépendance avec l'ensemble plus vaste dont elle fait partie.» [ADAM, 1991: 11]
[37] Recordo que me situo apenas nas estratégias verbais. Estratégias paraverbais e não verbais acompanham também e sempre a realização deste, como de qualquer outro, acto de discurso. Nas ficções narrativas, estes aspectos são frequentemente fornecidos pelo narrador, através do discurso atributivo e dos verba dicendi.
[38] Representações, no sentido que lhe dá Jean-Blaise Grize, de “formações imaginárias” que os interlocutores têm de si próprios e um do outro, da própria relação e situação de comunicação, do tema da conversa, etc. [Cfr. GRIZE, 1990: 33-34]
[39] A invasão do espaço físico do outro é sempre um FTA não verbal e, por isso, um ataque ao seu território, à sua face negativa. Mais por verdadeiro receio que por cortesia, a raposa não o comete. Passaram-se minutos, e a raposinha tentada, vai não vai, a arremeter por ali dentro, à ventura, fosse o que Deus quisesse. D. Salamurdo, porém, tinha garras de aço que apertavam como turqueses, dentes possantes que uma vez ferrados não abriam mais, e acobardou--se. [RIBEIRO, id.: 29]
[40] RIBEIRO, id.: 28. Conforme a prática seguida em estudos de análise conversacional, cada interactante é aqui indicado pela inicial – R de raposa e T de teixugo – imediatamente seguida do número de turno de fala – [R1], neste caso. Quando entrar em cena o teixugo, será [T1]. O número entre parêntesis rectos – [1], no caso – indica o acto de fala. Estes terão uma numeração sucessiva, independentemente de serem realizados por [R] ou [T].
[41] É a conhecida questão dos princípios de preservação da face (face want) e figuração (face work) que o sistema de cortesia preconiza. As noções de face want e de face work são complementares e estão intimamente relacionadas com as noções de face e de FTA e FFA. Ou seja, todos os interactantes desejam ver cuidada a sua face, tanto negativa como positiva, sabendo que qualquer acto de comunicação é potencialmente ameaçador dessa mesma face. Assim, a contradição aparente entre a impossibilidade de não comunicar e o desejo de preservação da face resolve-se através de processos de figuração permanente, o que passa pelas estratégias de cortesia. Por isso, a cortesia também se define como «un moyen de concilier le désir mutuel de préservation des faces, avec le fait que le plupart des actes de langage sont potentiellement menaçants pour telle ou telle de ces mêmes faces.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 53]. Para a noção de figuração (face work), também ela goffmaniana, cfr. GOFFMAN, 1974: 15-30.
[42] O discurso atributivo do narrador não nos fornece elementos paraverbais que a raposa tenha utilizado também na realização de [R1]. Actos não verbais e paraverbais podem acompanhar e atenuar também a realização linguística de um FTA.
[43] Análises desenvolvidas de trocas verbais rituais (uma reparadora -o pedido de desculpa- e outra de cumprimento -o agradecimento) encontram-se em KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 149-301; 1996: 83-88 (versões resumidas). Cfr. também EGNER, 1988; GOFFMAN, 1973: 101-180.
[44] Não é por acaso que uma intervenção reactiva frequente a chamamentos deste tipo é Que quer?
[45] Tanto mais quanto D. Salamurdo se situava a si próprio na posição daqueles que vivem em casas com portas de certa teoria. [RIBEIRO, id.: 30]
Referências
ADAM, J.-M., 1991: «Cadre théorique d’une typologie séquentielle», Études de Linguistique Appliquée, 83: 7-18.
CARREIRA, M. H. A., 1995: Modalisation Linguistique en Situation d’Interlocution. Proxémique verbale et modalités (Thèse de Doctorat d’État en Linguistique). Paris: Université de Paris IV- Sorbonne.
CHIMOMBO, M. & ROSEBERRY, R. l., 1998: The Power of Discourse. An introduction to discourse analysis. New Jersey / London: Lawrence Erlbaum Assocites, Publishers.
EGNER, I., 1988: Analyse Conversationnelle de l’Échange Réparateur en Wobé. Parler wee de Côte d’Ivoire. Berne: Peter Lang.
GOFFMAN, E., 1973: 1974: Les Rites d’interaction. Paris: Minuit.
----------- Les Relations en public. Paris: Minuit.
GRIZE, J.-B, 1990: Logique et Langage. Paris: Ophrys.
HALL, E. T., 1986: A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d’Água (Trad. port. de The Hidden Dimension, 1966).
----------- 1981. Proxémique. In Yves Winkin (org.) : La nouvelle communication. Paris : Seuil ; pp. 191-221.
KERBRAT-ORECCHIONI, C., 1990, 1992, 1994: Les Interactions verbales (Tomo I, II e III). Paris: Colin.
----------- 1996: La conversation. Paris: Seuil.
LARGUECHE, E., 1983: L’Effet Injure. De la pragmatique à la psychanalyse. Paris: PUF.
MEYER, M., 1993: Questions de Rhétorique. Langage, raison et séduction. Paris: Librairie Générale Française.
RIBEIRO, A., 1961: Romance da Raposa. Amadora: Bertrand.
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