quinta-feira, 11 de agosto de 2011

UMA SENHORA DE MUITA TRETA

CORTESIAS E DESCORTESIAS DUMA SENHORA DE MUITA TRETA (I)


[O texto que, com ligeiras alterações, começo a reproduzir neste post encontra-se publicado em Actas do XV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, 2000, pp. 257-286, e em Cadernos Aquilinianos, n.º 11, 2000, pp. 51-80]




«[...] vamos ter de lidar [...] com aquelas palavras que são mulas de carga que usamos todos os dias para intensificar as nossas frases, maldizer a nossa sorte e condenar ou provocar os nossos concidadãos.»
BURGEN, 1996: 6

Por dotada ser de «palavreado» com que facilmente «ilude» e «engana», «ataca» e «derriba»[1] os seus interlocutores, Salta-Pocinhas, a famosa protagonista do Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro, tratada é também por senhora de muita treta[2].
Para iludir e enganar, realiza ela actos verbais, orientados uns para a valorização da face do destinatário, orientados outros para a desvalorização da sua própria face, percorrendo, se necessário, e gerindo-os, conforme as conveniências, todos os degraus do sistema de cortesia. Ao invés, para atacar e derribar, realiza ela outros actos verbais que, por lesarem a face do destinatário, são descorteses por natureza. Por isso, se, hipócrita, é capaz de, para ver cumpridos os seus desígnios, seduzir, por aproximação e deferência, o interlocutor e mesmo elevá-lo aos cumes do tratamento honorífico, com maior facilidade ainda, vingativa e despeitada, o destrona, em caso de infortúnio, remetendo-o, através de insultos, a uma posição distanciada e distanciadora, invertendo por completo as relações interpessoais entretanto estabelecidas.
Dessas cortesias e descortesias faz a raposeta pintalegreta outras tantas estratégias conversacionais que, a nível relacional e transaccional[3] discursivamente manipuladas, lhe permitem vencer as constantes lutas de subsistência e sobrevivência com que todos os dias se vê confrontada.
Impossível tratar, aqui e agora, todas as representações linguísticas de cortesia e descortesia[4] a que a Salta-Pocinhas recorre. Limitar-me-ei, por isso, às formas e fórmulas[5] nominais de tratamento[6], onde incluo um determinado tipo de insultos, e considerarei apenas aquela interacção verbal[7] onde esses tratamentos, corteses e descorteses, se encontram em maior número.
Além das evidentes funções fáticas e deícticas, os tratamentos constituem também processos de estabelecimento e regulação de distâncias[8] entre os interlocutores, afectando e condicionando a construção e organização sequencial e configuracional das interacções verbais.
Estudados, regra geral, como fenómenos linguísticos relativamente autónomos de auto e hetero-referência, os tratamentos serão aqui analisados no âmbito mais largo da cortesia verbal, ramo de investigação recente no seio dos estudos da pragmática linguística, em geral, e da análise conversacional ou do discurso, em particular.
É no quadro teórico proposto por Kerbrat-Orecchioni[9] que desenvolverei a análise das cortesias e descortesias da tal senhora de muita treta. À constituição de um sistema de cortesia linguística aplicável aos diferentes tipos de interacções verbais existentes em todas as sociedades e culturas, tem dedicado a linguista francesa a sua obra mais recente. Em particular, os tomos II e III de Les Interactions Verbales, de que os capítulos 7 a 15 de La Conversation constituem uma síntese essencial[10].
Kerbrat-Orecchioni integra no âmbito da cortesia linguística «tous les aspects du discours qui sont régis par des règles, et dont la fonction est de préserver le caractère harmonieux de la relation interpersonnelle». Tais princípios e regras governam e regulam, não só, «les comportements que le locuteur doit adopter envers son partenaire d’interaction», mas também «les attitudes que le locuteur doit adopter vis-à-vis de lui-même»[11]. Assim, já não é só a problemática dos constituintes do texto conversacional que se estuda, mas também as relações que, a nível interpessoal, os interlocutores manifestam numa dada situação ou co(n)texto[12] de conversação.
A investigadora parte das teorias já “clássicas”[13], que analisa, aproxima e aperfeiçoa, para organizar um «sistema da cortesia», em torno de três eixos principais:

1-      Eixo dos princípios que regem os comportamentos linguísticos que o locutor deve adoptar em relação a si próprio (princípios L-orientados) e em relação ao seu alocutário (princípios A-orientados).
2-      Eixo dos princípios que relevam da cortesia negativa  vs. cortesia positiva.
3-      Eixo dos princípios que dizem respeito à face negativa  vs. face positiva.

 Articulando e cruzando estes eixos, são hierarquizados, em função da sua importância e poder discriminatório, cinco princípios, que o quadro seguinte resume[14].



SISTEMA DE CORTESIA


(I) Princípios A-orientados
(1) Cortesia negativa:
Evite ou atenue actos verbais ameaçadores para
a)      a face negativa do alocutário
b)      a face positiva do alocutário.

(2) Cortesia positiva:
            Produza actos verbais valorizadores de
a)      a face negativa do alocutário
b)      a face positiva do alocutário.

(II) Princípios L-orientados
A-     Princípios favoráveis a L
(1) Cortesia negativa:
            Proceda de modo a não perder, de forma demasiado ostensiva,
a)      a sua face negativa
b)      a sua face positiva

(2) Cortesia positiva

B-     Princípios desfavoráveis a L
(1) Cortesia negativa:
            Evite ou atenue a formulação de actos valorizadores para
a)      a sua face negativa
b)  a sua face positiva

(2) Cortesia positiva:
            Realize actos ameaçadores em relação
a)      à sua face negativa
b)      à sua face positiva


Os princípios A-orientados (I) vêm à cabeça do sistema, pois representam a cortesia em sentido estrito. Por abstenção ou compensação (no caso da cortesia negativa[15]) e por produção (no caso da cortesia positiva[16]), tais princípios são sempre favoráveis à face do alocutário, na sua dupla vertente negativa e positiva[17].
Segundo o princípio I-1, deve o locutor evitar ou, tal não sendo possível, atenuar, através de procedimentos verbais, paraverbais e não verbais[18], adequados à situação ou contexto, todos os actos que ameacem (FTAs[19]) as faces negativa ou/e positiva do alocutário. São muitos os FTAs que podem ocorrer numa interlocução. De evitar são, regra geral[20], por descorteses, os insultos e os actos directivos explicitamente formulados. Mas se evitados não puderem ser, deve a sua formulação ser suavizada através dos procedimentos atenuantes, substitutivos ou/e acompanhantes, que o sistema da língua e o sistema da cortesia linguística põem ao nosso dispor.[21]
O princípio I-2 é de cortesia positiva e, por isso, propõe a valorização das faces do alocutário, através da realização de FFAs[22], tais como, propostas de ajuda, de serviços e de “presentes verbais”. Os tratamentos corteses, em geral, e, dentro deles, os honoríficos e deferenciais, em particular, são realizações linguísticas deste princípio.
Na hierarquia dos princípios de cortesia, vêm, em segundo lugar, os princípios L-orien-tados (II), distinguindo princípios favoráveis a L (II-A) de princípios desfavoráveis a L (II-B).
No que toca aos princípios II-A, regista-se apenas um (II-A-1), o qual estabelece que L deverá salvaguardar, tanto quanto possível o seu território de, por exemplo, intrusos e inoportunos, mas também não permitir que lhe “arrastem a face pela lama”.
A cortesia positiva não propõe qualquer princípio favorável a L. Nas sociedades ocidentais, «on ne saurait raisonnablement admettre, parmi les principes constitutifs du savoir-vivre, quelque chose comme “faites votre propre éloge” [...].» Excepto circunstâncias especiais, «le plaidoyer pro domo est proscrit dans notre société, qui juge sévèrement les manifestations trop insolentes de auto-satisfaction.»[23] Ou seja, a protecção da nossa própria face positiva não aconselha a sua valorização ostensiva[24], por modéstia e cortesia.
Acontece, pelo contrário, encontrar-se, frequentemente, no sistema da cortesia verbal, regras que jogam sobretudo a desfavor do locutor. São os princípios II-B. O princípio II-B-1 propõe que, a ter de se fazer o nosso próprio elogio, recorramos, por exemplo, a processos de indirecção discursiva ou a figuras retóricas, como o litote, a metáfora, a ironia, ou a outros processos de substituição ou de minimização.
Mas se o auto-elogio é, em princípio, socialmente proscrito, já a auto-degradação das faces é, regra geral, prescrita. Pode até dizer-se que a hetero-cortesia passa, muitas vezes, pela auto-descortesia[25]. Estamos no âmbito do princípio II-B-2, que defende comportamentos aparentemente «masoquistas». Por modéstia, humildade, bom relacionamento interpessoal – de cortesia, em suma – lesamos os nossos territórios, ou degradamos, sincera ou insinceramente, a nossa face positiva.
Os fenómenos da cortesia verbal não são, todavia, tão lineares e simples quanto a descrição apresentada pode sugerir. Com efeito, nem sempre é fácil determinar, com precisão, se um acto verbal é cortês ou descortês, se ele ameaça, protege ou valoriza a face de cada um dos interlocutores, ou as faces de ambos ao mesmo tempo. Como também não é fácil reconhecer o tipo de relações interpessoais que, através desse acto, os interlocutores estabelecem, alteram ou denegam. Os princípios de cortesia têm uma realização e uma eficácia que dependem muito, por um lado, das sociedades e suas culturas, e, por outro, das situações concretas em que ocorrem e se desenvolvem as interlocuções. Mas não cabe, aqui e agora, analisar a complexidade dos fenómenos da cortesia, tanto a nível intracultural como intercultural[26].

[Continua]

David F. Rodrigues



[1] Os termos entre parêntesis foram colhidos nas entradas «treta» e «tretas» do Dicionário Morais [SILVA, 195810 (vol. XI): 216].
[2] RIBEIRO, 1961: 7; 29; 78. Citações ipsis verbis ou reformuladas do Romance da Raposa serão transcritas em itálico. Apenas as transcrições mais desenvolvidas serão localizadas pela respectiva página.
[3] O nível relacional diz respeito ao tipo de relação que os interlocutores ou interactantes duma dada interlocução estabelecem, mantêm ou alteram entre si, de acordo com a situação ou contexto da conversação e seu desenvolvimento. O nível transaccional diz respeito, sobretudo, ao conteúdo informativo que, a propósito de um tema ou estado de coisas, é trocado entre os interactantes. É evidente que, numa interacção verbal, estes níveis estão sempre presentes e condicionam-se reciprocamente.
[4] Desconheço a existência de teoria que, à semelhança do que acontece com a cortesia, descreva, na sua globalidade, os fenómenos de descortesia. Creio, contudo, que o modelo proposto por Kerbrat-Orecchioni serve também para explicar os fenómenos descorteses, particularmente os verbais. Como observa Camille Pernot, os principais traços da cortesia desenham a contrario, «dans ses grandes lignes, la figure immuable de l’impolitesse, celle que les différents codes ont invariablement bannie et qu’aucun d’eux ne pourra jamais admettre.» [PERNOT, 1996: 357]
[5] Distingo formas de fórmulas. As fórmulas são realizações estereotipadas, mais ou menos rituais e rotineiras, que, devido ao seu uso recorrente e institucional, perderam, muitas vezes, o seu valor semântico. Embora as fórmulas sejam também formas linguísticas, reservo, contudo, a designação de formas para construções que apresentem uma relativa originalidade.
[6] Além das nominais, o sistema de tratamento do português de Portugal inclui também as formas verbais, marcadas pelas desinências, as pronominais e as pronominalizadas. Cfr., entre outros, CARREIRA, 1995; CINTRA, 19862, MARQUES, 1995 e MEDEIROS, 1985.
[7] Interacção verbal, porque a fala, oral ou escrita, é também acção. Há interacção verbal quando duas ou mais pessoas (ou como tal tomadas, v.g., nas fábulas) se encontram e trocam entre si os seus discursos, dando origem ao que se pode chamar uma comunicação interindividual. Os interlocutores agem uns sobre os outros e realizam, ao mesmo tempo, uma acção conjunta sobre a realidade. [Cfr. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 17-18 e 1996: 4-5]
     A interacção verbal em causa não é autêntica, mas romanesca. A sua composição e organização, tanto ao nível interaccional como transaccional, obedece, por isso, à estratégia narrativa do Romance da Raposa. Em particular, no que toca à caracterização da sua protagonista e das restantes personagens que com ela interagem.
[8] A distância, conceito importante no quadro da análise conversacional, diz respeito ao tipo de relações interpessoais dos interlocutores. Distinguem-se, habitualmente, dois tipos de distância ou relação: horizontal e vertical. A primeira «renvoi au fait que, dans l’interaction, les partenaires en présence peuvent se montrer plus ou moins “proches” ou au contraire “éloignés”». Existe, assim, um eixo horizontal, gradual e simétrico, orientado, de um lado, para a familiaridade e intimidade, e, do outro, para o distanciamento. A relação ou eixo vertical (também dita de poder, hierárquica ou de dominação) estabelece uma “relação de lugares” entre os interlocutores: «cette dimension renvoi au fait que les partenaires en présence ne sont pas toujours égaux dans l’interaction». Assim, um deles pode ocupar uma posição alta, enquanto o outro pode ocupar uma posição baixa. Gradual, como a horizontal, a vertical é, porém, «par essence dissymétrique». [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 41 e 45]
[9] Kerbrat-Orecchioni retoma e desenvolve teorias linguísticas de outros autores. Em primeiro lugar, a proposta que Penelope Brown & Stephen C. Levinson apresentam em Politeness - Some universals in language usage [19966], mas também noções e conceitos que Geoffrey Leech utiliza em Principles of Pragmatics [199610]. Estes autores, a par de Robim Lakoff [1998], são geralmente considerados «pioneiros» no estudo da cortesia linguística. Este ramo da análise do discurso começou na década de 70 e, desde então, tem vindo a desenvolver-se e afirmar-se no seio dos estudos linguísticos. A cortesia está a merecer também o interesse de outras disciplinas, como a filosofia, a história e a antropologia. [Cfr. PERNOT, 1996 e DHOQUOIS (dir.), 1992]
[10] O tomo I de Les Interactions introduz a análise conversacional das interacções verbais e estuda a estrutura de cada conversação, entendendo-a como um texto colectivamente produzido por dois ou mais interactantes, num determinado contexto ou situação de comunicação. No tomo II, o estudo incide sobre a construção da relação interpessoal que se verifica em toda e qualquer interacção verbal, com especial destaque para o funcionamento da cortesia, em geral, e da cortesia linguística, em particular, propondo, para esta, um modelo de descrição. O tomo III está dividido em duas partes: na primeira, reflecte-se, segundo uma perspectiva contrastiva, sobre as variações culturais que afectam as componentes estruturais e relacionais das conversações; a segunda é constituída pela aplicação das teorias, expostas anteriormente, a dois tipos diferentes de trocas verbais rituais, a desculpa e o cumprimento. La Conversation é um resumo destes tomos. [Cfr. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990; 1992; 1994; 1996]
[11] KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50-51 e 62.
[12] Na noção de contexto ou situação de comunicação estão incluídos, não só, o tempo e o espaço da interacção, mas também o número de participantes e as suas características individuais, o objectivo individual e geral da conversação, além das relações mútuas de lugares que os interactantes atribuem e se atribuem, no respeito ou desrespeito que expressam, simétrica ou assimetricamente, por si próprios e pelo(s) outro(s).
[13] Ver nota 9.
[14] Kerbrat-Orecchioni faz corresponder as regras de cada princípio a máximas e sub-máximas que, em termos de custo e benefício, Leech propõe como constituintes do princípio de cortesia. Em síntese, um acto é intrinsecamente tanto mais descortês quanto maior é o custo para o destinatário e menor o seu benefício; é mais cortês, em situações inversas. Cfr. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 181 e 184, LEECH, 199610: 132. A fim de evitar outras descrições teóricas e metodológicas, tal correspondência é aqui omitida.
[15] «La politesse négative est de nature abstentionniste ou compensatoire: elle consiste à éviter de produire un FTA, ou à en adoucir par quelque procédé la réalisation – que ce FTA concerne la face négative (ex.: ordre) ou la face positive (ex.: critique) du destinataire.» [KERBRAT-ORECHIONI, 1996: 54]
     FTA é sigla da expressão inglesa Face Threatening Act, proposta por Brown & Levinson: designa aquele acto verbal que, explícita ou implicitamente, encerra uma ameaça intrínseca para as faces, positiva e/ou negativa, de cada um dos interlocutores. [Cfr. BROWN & LEVINSON, 19966: 60 e 65; KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 51].
[16] «La politesse positive est au contraire de nature productionniste: elle consiste à effectuer quelque FFA pour la face négative (ex.: cadeau) ou positive (ex.: compliment) du destinataire.» [KERBRAT-ORECCHIONI, id.: 54]
     FFA é sigla da expressão inglesa Face Flattering Act, introduzida por Kerbrat-Orecchioni: designa os actos intrinsecamente valorizadores das faces dos interactantes, como sejam os cumprimentos, os agradecimentos ou os votos de boas-festas. Com este tipo de actos, que também designa por «anti-FTA», a autora melhora significativamente a proposta teórica de Brown & Levinson. Estes autores, tendo uma concepção demasiado pessimista da sociedade, consideraram sobretudo a cortesia negativa. Como observa a autora, «se montrer poli dans l’interaction, c’est produire des FFAs tout autant qu’adoucir l’expression des FTAs». E acrescenta: «dans nos représentations prototypiques, la louange passe pour “encore plus polie” que l’atténuation d’une critique.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 51 e 53-54] As siglas FTA e FFA (ou as iniciais das suas traduções noutras línguas; cfr., v. g., VIDAL, 1993: 176 e BLANCAFORT & VALLS, 1999:163 e 169), são hoje correntes entre os analistas da cortesia linguística.
[17] Face é um dos conceitos fundamentais do sistema de cortesia. Kerbrat-Orecchioni retoma-o da proposta de Brown & Levinson que, por sua vez, o tinham ido buscar a Goffman, entre outros. [Cfr. BROWN & LEVINSON, 19966: 13--15 e GOFFMAN, 1974: 9-42]
     Kerbrat-Orecchioni, seguindo explicitamente Brown & Levinson, define, como segue, as duas vertentes da noção de face:
«– la face négative, qui corresponde en gros à ce que Goffman décrit comme les “territoires du moi” (territoire corporel, spatial, ou temporel, biens matériels ou savoirs secrets...);
 la face positive, qui correspond en gros au narcissisme, et à l’ensemble des images valorisantes que les interlocuteurs construisent et tentent d’imposer d’eux-mêmes dans l’interaction.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 51] Para a noção goffmaniana de «territórios do eu», cfr. GOFFMAN, 1973: 43-72.
     É de salientar a clarificação que a investigadora estabelece entre cortesia negativa e cortesia positiva, noções que, em Brown & Levinson, se confundem, frequentemente, com as noções, respectivamente, de face negativa e face positiva. Na cortesia negativa, como na positiva, cada interactante tem sempre uma face positiva e uma face negativa. Assim, numa interacção com, por exemplo, dois interlocutores, estão sempre quatro faces em presença.
[18] A tais procedimentos chamam Brown & Levinson softners, que Kerbrat-Orecchioni traduz por adoucisseurs e os espanhóis por atenuadores. [Cfr. BROWN & LEVINSON, 19966: 70; KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 55 e BLANCAFORT & VALLS, 1999: 169]. Utilizo o termo atenuantes e referir-me-ei apenas aos verbais.
[19] Cfr., supra, nota 15.
[20] A cortesia é a norma. Há, contudo, excepções: «Il y a évidement bien des situations où se trouve suspendu l’exercice des règles de politesse (en cas d’urgence par exemple, ou d’interaction fortement agonale, ou de communication à caractère ludique – dans toutes les sociétés il existe des formes, parfois elles-mêmes ritualisées, de transgression humoristique des rituels de politesse).» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 60]
[21] Cfr. KERBRAT-ORECCHIONI, id: 55-59, para uma selecção, classificação e exemplificação destes procedimentos ou estratégias linguísticas e discursivas (marcadores) atenuantes da realização inevitável de FTAs.
[22] Cfr., supra, nota 16.
[23]  KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 184.
[24] Uma excepção: «l’auto-glorification est de règle chez les hommes politiques – mais c’est justement qu’ils sont “fous” (la normalité, c’est bien la modestie)». [Ibid.: 188]
[25] «Comment expliquer un principe aussi peu “naturel” que cette loi de modestie?» Assim: «s’il n’est pas convenable d’exalter sa propre face positive, c’est parce qu’un tel comportement atteint indirectement, par un mouvement inverse de dévalorisation implicite, la face d’autrui; s’il ne faut pas se rehausser soi-même, c’est que cela risque de rebaisser l’autre, et s’il convient parfois de se rabaisser, c’est qu’il y a des chances pour que l’autre s’en trouve du même coup rehaussé.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 188]
[26] Para uma visão geral da problemática, cfr. KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 1.ª Parte; 1996: caps. 11-13.

Referências

BLANCAFORT, H. C. & VALLS, A. T., 1999: Las Cosas del Decir. Manual de análisis del discurso. Barcelona: Ariel.
BROWN, P. & LEVINSON, S. C., 19966: Politeness. Some universals in language. Cambridge: Cambridge University Press.
BURGEN, S., 1996: A Língua da Tua Mãe. Um guia de insultos europeus. Estoril: Atena.
CARREIRA, M. H. A., 1995: Modalisation Linguistique en Situation d’Interlocution. Proxémique verbale et modalités (Thèse de Doctorat d’État en Linguistique). Paris: Université de Paris IV- Sorbonne.
CINTRA, L. F. L., 19862: Sobre «Formas de Tratamento» na Língua Portuguesa. Lisboa: Horizonte.
DHOQUOIS, R. (dir.), 1992 : La Politesse. Vertu des apparences. Paris : Autrement.
GOFFMAN, E., 1973: Les Relations en public. Paris: Minuit.
----------- 1974: Les Rites d’interaction. Paris: Minuit.
KERBRAT-ORECCHIONI, C., 1990, 1992, 1994: Les Interactions verbales (Tomos I, II e III). Paris: Colin.
----------- 1996: La conversation. Paris: Seuil.
LAKOFF, R., 1998: «La lógica de la cortesía, o acuérdate de dar las gracias», in JULIO, M. T. & MUÑOZ, R. , (org.), 1998: Textos Clásicos de Pragmática. Madrid: Arco/Libros.
LEECH, G., 199610: Principles of Pragmatics. London / New York: Longman.
MARQUES, M. E. R., 1995: Sociolinguística. Lisboa: Universidade Aberta.
MEDEIROS, S. M. de O., 1985: A Model of Address Form Negotiation: a Sociolinguistic Study of Cointinental Portuguese (Dissertation). Austin, Texas: University of Texas.
PERNOT, C., 1996: La Politesse et sa Philosophie. Paris: PUF.
RIBEIRO, A., 1961: Romance da Raposa. Amadora: Bertrand.
SILVA, A. de M., 1949-195910: Grande Dicionário da Língua Portuguesa (12 vols.). Lisboa: Confluência.
VIDAL, M. V. E. , 1993: Introducción a la Pragmática. Barcelona: Anthropos & Madrid: UNED.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Apresentação

[Reproduzo o post publicado  em 20.12.2005.]


Prezado Leitor,
Com este blog pretendo partilhar, com linguistas, em particular, e público, em geral, estudos que venho realizando sobre a Cortesia Linguística, domínio de que, a seguir, faço uma brevíssima apresentação. Centrar-me-ei, sobretudo, sobre descrições linguísticas e práticas de comportamentos corteses e descorteses em português.
Agradeço o envio de críticas, comentários, exemplos de práticas, textos, referências bilbiográficas (específicas e afins), etc.
Seguir-se-ão outros textos.
Muito obrigado!
Cumprimentos!
David F. Rodrigues
CORTESIA LINGUÍSTICA
A Cortesia Linguística (CL) constitui, desde finais dos anos setenta do século passado, um novo domínio de investigação na área da Pragmática Linguística, em geral, e da Análise do Discurso, em particular. O seu objecto é constituído pelas formas verbais corteses e descorteses já inscritas no sistema de uma língua e pelas construções discursivo-textuais que, com idênticos valores, os locutores (falantes e escreventes) realizam nas suas diferentes práticas de comunicação.

Através das cortesias verbais (e das paraverbais que geralmente as acompanham) os locutores, em situações de interlocução real ou fictícia, isto é, de efectivos interlocutores, ou em situações de alocução real ou fictícia, isto é, de apenas alocutores, procuram ora evitar ou atenuar a realização de actos verbais descorteses, ora formular e construir actos verbais corteses.

O objectivo da CL, enquanto domínio de estudo científico, é duplo:
(i) identificar formas, construções e práticas, corteses e descorteses, realizadas tanto em interacções verbais estritas (conversas, diálogos, entrevistas…), como em interacções verbais latas (as restantes práticas não especificamente dialogais);
(ii) descrever e sistematizar os meios e mecanismos linguísticos e discursivo-textuais que realizam, explicam e explicitam tais formas, construções e práticas.

Recorrendo a estes meios, adequados, sempre, a cada situação e contexto de interlocução ou alocução, os interlocutores ou alocutores, porque sempre, uns e outros, em interacção, e, por isso, sempre também interactantes, procuram, fundamentalmente, preservar as
faces ou imagens de uns e de outros, bem como de terceiros, presentes ou ausentes, em particular quando objecto de discurso. Deste modo se faz com que as diferentes interacções verbais decorram em maior ou menor sã convivência e harmonia social.

A Cortesia Geral é um
saber viver. Na sua dimensão verbal, é essencialmente um saber dizer que, por isso, é uma competência discursivo-textual [cf. Rodrigues (2002/2003)].

Robin Lakoff (1973), Geoffrey Leech (1983) e Penelope Brown & Stephen Levinson (1978/1987)[1] são considerados os fundadores da CL. De facto, as teorias destes autores, em particular a do último par, com ou sem as correcções, clarificações e desenvolvimentos, a nível terminológico e conceptual, introduzidos sobretudo por Catherine Kerbrat-Orecchioni (1992 e 1996), constituem os primeiros modelos sistematizados de análise da cortesia/descortesia verbal, segundo uma perspectiva fundamentalmente pragmático-linguística. A eles se deve o mérito da caracterização da especificidade dos actos verbais corteses (e,
a contrario, dos descorteses), bem como a importância que eles desempenham nos processos da comunicação humana, em geral, e da interacção verbal, em particular.
Outros autores, porém, da filosofia à linguística, os precederam na reflexão e estudo das (des)cortesias, nomeadamente aqueles que chamaram a atenção para o carácter accional e interaccional da linguagem verbal. Cabe destacar, no campo da Filosofia da Linguagem, os nomes de Paul Grice (1975) e de John Searle (1969 e 1975). No campo da Microssociologia, destaca-se Erving Goffman (1967, 1971, 1981). No campo da Linguística Geral, são de salientar, por um lado, os trabalhos de Charles Bally (1909 e 1913), um dos editores do célebre Cours de Linguistique Général (1916) de Ferdinand Saussure, de quem foi discípulo e sucessor, na Universidade de Genève, e de Mikhaïl Bakhtine (1929/1977 e 1984). Consideramos estes autores os precursores da CL.
Bibliografia referida:
Bakhtine, M. (1929/1977): Le Marxisme et la Philosophie du Langage. Paris: Minuit.
------ (1984): Esthétique de la Création Verbale. Paris: Gallimard.
Bally, Ch. (1909): Traité de Stylistique Française (2 vols.). Genève/Paris: Librairie de l'Université et Georg & Cie.
------ (1913): Le Langage et la Vie. Genève: Atar.
Brown, P. & Levinson, S. C. (1978/1987): Politeness. Some universals in language. Cambridge: Cambridge University Press.
Goffman, E. (1967): Interaction Ritual. Essays on face to face behavior. New York: Doubleday Anchor.
------ (1971): Relations in Public: Micro-studies of the organization of experience. New York: Basic Books.
------ (1981). Forms of Talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
Grice, P. (1975): «Logica and conversation». In Cole, P. & Morgan, J.L. (eds.): Syntax and Semantics (vol. 3): Speech Acts. New York.
Kerbrat-Orecchioni, C. (1992): Les Interactions Verbales (Tomo II). Paris: Colin.
------ (1996): La Conversation. Paris: Seuil.
Lakoff, R. T. (1973): «The logic of politeness; or, minding your p's and q's». In Corum, C. et al. (eds.): Papers from the ninth regional meeting of the Chicago Linguistic Society. Chicago: Chicago Linguistic Society.
Leech, G. N. (1983): Principles of Pragmatics. London & New York: Longman.
Rodrigues, D. F. (2002/2003): Cortesia Linguística, uma Competência Discursivo-textual. Formas corteses e descorteses em português. (Dissertação de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.
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[1] Brown & Levinson publicaram, em 1978, uma primeira versão do seu ensaio, que pode ser considerado a primeira edição de Politeness. Some universals in language use, publicado, depois, em livro (1987), com uma nova e longa introdução, algumas correcções e nova bibliografia.