domingo, 19 de janeiro de 2014

Coletânea [026]

017. Diálogo polémico, com insultos e outras descortesias verbais pelo meio (1856)


O trecho que, neste post, se apresenta encontra-se em Dous Santos não Beatificados em Roma, narrativa de Camilo Castelo Branco (1825-1890). Inicialmente publicada, em 1856, no jornal portuense O Clamor Público, o escritor juntou-a, depois, no volume Duas Horas de Leitura (1857), a de Do Porto a Braga. Na 2.ª edição do volume (1858), reuniu mais duas narrativas: Impressão Indelével e Sete de Junho de 1849. [Cf. AQUI ou Cabral, 1989: 243]

Neste trecho, dois irmãos – Genoveva e Januário – dialogam, discordando, sobre o futuro de Matilde, órfã de mãe e filha do segundo, mas educada pela primeira.
Entretanto, Matilde conhece Paulo e amam-se, em segredo do Januário. Um dia, porém, Genoveva diz ao irmão que «era necessário casar Mathilde», ao que ele perguntou «se o noivo era cavalheiro do habito [de Cristo], pelo menos.» A irmã «respondeu, que era filho d'um honrado negociante.» Ele «sorriu-se, e disse: lé com lé, e cré com cré
«Januário Pires de Miranda, natural de Mirandella, era alferes do 4.º da legião […]. Depois da batalha do Bussaco, […] como notavel proprietario que era na sua comarca, foi um dos deputados á côrte no Rio de Janeiro, para felicitarem S. Alteza pelos feitos heroicos dos seus vassallos, como se não fosse S. Alteza quem devia felicitar os vassalos.»
«[…] No dia seguinte, Januario Pires de Miranda sahiu do Paço com o habito de Christo pendurado na casaca, e um alvará régio de perdão para que as justiças o não podessem em tempo algum perseguir por crime de morte, que elle agraciado perpetrara na pessoa d’um seu visinho, com uma saxola, por causa d’uma partilha d’aguas na courella do Reguengo»
«O Cavalheiro do habito, desconfiando das democraticas doutrinas de sua irman, em materia de casamento, resolveu levar comsigo para Alfarella sua filha. Mathilde tão depressa a mandaram preparar a troixa, deu parte a Paulo da situação violenta, em que a punham os deveres de filha.» O suicídio foi tentação que, a não se consumar o casamento, a cabeça de ambos rondou.
Genoveva estava ao lado da sobrinha. Confortava-a. Paulo, por sua vez, encontrava apoio no tio frei Bento, franciscano. Todos pediam a Deus que se desse o milagre de Januário consentir o casamento. Rezavam e choravam, choravam e rezavam. Sobretudo Genoveva e Matilde. Mas em vão. [Cf. Branco, 18582: 13-17]

«O dialogo continuava entrecortado dos gemidos de ambas, quando Januario veio dar com ellas pela segunda vez em mudo colloquio de lagrimas.

“Deixemo-nos d’asneiras! (disse elle.) Basta de choramingar. Isto não é para sempre... O diacho das mulheres choram por dá cá aquella palha! Tivesseis vós em que pensar, e não andarieis sempre a lagrimejar vinagre por um olho, e azeite por outro.
– O’ Januario.... – tornou D. Genoveva – tu estás cada vez mais grosseiro..
“Não estou magro não, graças a Deus; não tenho fastio, e mastigo bem; mas não sabes por que, Genoveva? E por que eu tracto do que serve cá para o amanho da vida, e não ando com a cabeça por papos d’aranhas. Tenho trabalhado muito para deixar uma boa casa a dois filhos que tenho, e não é só isso; ando a arranjar-lhe honras lá por esses mundos de Christo, e cá esta menina, sem meu consentimento, anda por cá a doudejar...
– Calla-te, calla-te, que és um homem sem educação nenhuma... Vai-te vestir, Mathilde, vai, que eu preciso ficar sósinha com teu pai.
Mathilde sahiu, e a senhora D. Genoveva, vermelha de zanga, continuou assim, em quanto seu irmão apertava os botões das polainas:
– Não quiz que tua filha me ouvisse, para que ella não faça de seu pai a idêa que eu faço. Tu és um homem como fostes sempre. Um malcreado, com todos os defeitos que traz comsigo a falta de civilidade. És um lavrador dos mais rusticos da nossa terra, e metteu-se-te na cabeça ser fidalgo, por que pensas que ser fidalgo é trazer um pendurelho ao peito. Valha-te Deus! se nosso pai te visse com isso... dava-te com as sôgas dos bois até tocar a quebrado. Eu fallo-te a verdade: estava morta que tu sahisses de Villa-Real, antes que os fidalgos cá da terra saibam que tu tens a mania da fidalguia. Os rapazes atiravam-te ás pedras; e eu, que tenho guardado com honra a posição que nosso pai me deu, teria vergonha, como tenho desde hoje, de ser tua irmã...
“Tu estás dizendo grandes atrevimentos !... Vai bacharelar ao diabo... Mette-te com a tua vida...
– Olha cá... sempre te quero dizer duas palavras a respeito de tua filha. Minha sobrinha foi creada comigo; as prendas que tem deve-m’as a mim...
“Então queres que t’as pague?
– Não, estupido, não quero que m’as pagues; mas ella é que m’as quer pagar com a gratidão da nobre alma que tem, e não parece ter nada da tua. A infeliz é minha verdadeira amiga, e nunca poderá ter por ti outro sentimento senão o da sujeição, e o do mêdo d’um tyranno... entendes?
“Acho que entendo... Cá vou assentando no meu canhenho... Andarei com o olho sobre ella...
– Não é preciso, mau homem, não é preciso vigial-a. Tem virtudes de sobra para te não enganar, e é mais possivel morrer que resistir ao despotismo de seu pai. Ora, se ella morrer, Januario, o responsavel, o criminoso, o verdugo és tu.
«Eu? ora essa! Boa vai ella!
– Sim, tu... E não tenho mais nada a dizer-te... Deus te não leve em conta as lagrimas que eu e ella choraremos...
“Pois tu que querias? aposto que todo esse aranzel é a troco de eu não querer que ella case com o borra-botas?
– Fecha essa bocca, ignorante! Tu darias quanto tens por ter na cara a honra que elle tem nos calcanhares. Quando Deus quer dar a um pai um genro virtuoso, escolhe no mundo rapazes como aquelle..., e esses são muito raros.
“Mas eu não quero, e arrumou! Vão lá tirar-me esta da cabeça! Não quero, e não quero! A rapariga é minha filha, eu sou senhor do que é meu; e não me puchem pela lingua, se não acaba-se aqui o mundo!...

O senhor Jannario foi fecundo n’este genero. Disse, o mais rusticamente que pôde, singulares asneiras sobre o direito paternal, e acabou por descobrir que tinha apertado ás avessas a polaina esquerda, que desabotoou para abotoar de novo, vomitando uma praga a cada botão.»

O insulto e outras descortesias verbais podem e devem ser estudados no quadro teórico da Cortesia Linguística. Em Rodrigues, 2003, encontram-se referências mais ou menos desenvolvidas, a atos de discurso deste tipo, atos que ameaçam as faces (positiva e/ou negativa) do alocutário e, por efeito de boomerang, do próprio locutor, bem como de terceiros, consoante o círculo de afetos de cada um. Os interessados poderão consultar, sobretudo, os caps. III, VIII, XIX, XI, XIV e XV do trabalho referido.

Bibliografia
BRANCO, Camilo Castelo, 18582: Duas Horas de Leitura. Porto: Casa de Cruz Coutinho, Editor; pp. 26-29.
CABRAL, Alexandre, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho (2.ª ed.: 2003).
RODRIGUES, David Fernandes, 2003: Cortesia Linguística – Uma competência discursivo-textual (Dissertação de doutoramento, apresentada em 2002 e defendida em março de 2003). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Disponível também AQUI.


NB - Nas transcrições, foi respeitada a grafia do original consultado.